Distância do Dia: 29,69 km. Distância Total: 197,13 km. Unhas nos pés: 9,5.
Exceto pelo trecho inicial, uns 3 quilômetros de subida, no asfalto, sem acostamento, o dia seria tranquilo. Nada muito insano em distância – menos de 30 km – e nem altimetria. Era sair de Conceição, penar um pouco no asfalto e pegar uma estrada de terra quase sem movimento (quem vai de uma cidade a outra de carro prefere pegar as MGs 010 e 232) e que corta trechos de mata fechada.
Sair de Conceição do Mato Dentro foi um alívio. Mais do que os prédios e igrejas centenários, mais que o pastel de angu, mais do que as reformas que transformaram a cidade num canteiro de obras, o que chama realmente a atenção na cidade são os inúmeros carros, ônibus, caminhões e caminhonetes identificado com letras e números das mineradoras. É triste saber que aqui do lado – pior, que aqui em volta – estão explodindo, escavando, revirando, destruindo tudo. Se bobear já já transformam a cachoeira do Tabuleiro em minério.
Comi um pão de queijo na padaria em frente à pousada e pouco depois das 6h já estava na estrada. Assim como nós anteriores, o clima era quente, mas nuvens cobriam o céu. Logo depois de entrar na terra cruzo o caminho com um senhor carregando um guarda-chuva. “Bom dia! Acha que hoje chove?” “Uai, tô ino lá pra roça e já tá chuveno in Beloriozonte, São Paulo, Ridijanero, essa chuva deve de chegar aqui hoje ainda. E ficá lá na roça na chuva num é bão não…”
E fomos, cada um pro seu lado, pensando se chove ou não, tiro a capa de chuva ou deixa, esse tipo de dúvida que acompanha quem está na estrada.
Ainda não tinha dado 7:30 quando vi o Dedé subindo a estrada, tocando seus gados: uma vaca, três bezerros. Saí de lado pra deixar, mas ele já foi abrindo a cerca e tocando os bichos pra dentro. “Hora de botar a criação pra pastar?”. É… “E que horas você busca de volta?” E sem responder, parecendo que precisava conversar e se abrir com alguém, ele começou a contar o caso da vaca que perdeu. Na segunda, quase no mesmo horário que sai de Diamantina pra minha caminhada, Dedé veio de Conceição, onde mora, pra tirar leite, buscar as vacas pra pastar e dar comida pros três cachorros e dois gatos que moram na casinha que tá construindo. De noite as vacas ficam ali, de dia pastam no terreno do primo. Quando chegou viu uma das vacas no chão. “Até pensei que fosse onça, que aqui tem demais”. Não era. A vaca tinha sido morta com um corte no pescoço. Na anca da vaca faltam dois pedaços. Alguém tinha entrado no terreno à noite só pra roubar os contra-filés. A vaca estava prenha, com “um bezerrinho desse tamaninho dentro da barriga”. Dedé procurou a polícia, mas ninguém teve interesse. “A secretária que veio me fazer pergunta. Num foi o delegado não. Falou que era que eu investigar. Eu não, uai! Eu acho que eu sei quem foi. Agora Deus me perdoe, eu tenho mulher, tenho filho pequeno, mas se eu pego o cara que faz uma coisa dessa eu mato”. A única vaca adulta que ele tem agora é que dá o leite pro seu filho é seu sobrinho. “E eu, se tivesse mais vaca, não ia vender o leite não. Ia doar tudo pro hospital”.
Descemos juntos os poucos metros entre o pasto e a casa. Quando vi o carro dele, comentei que tinha visto ele passar mais cedo. “Te vi também. Nó, falei pra minha mulher. Se eu não tivesse que levar o leite eu queria era vir todo dia correndo de Conceição até aqui. Isso é bão demais!”.
Não deu uma hora desse encontro e eu parei pra tomar água quando chega o seu Zé montado num burro. “Bom dia!” “Bom dia. Uai, eu acho que eu já te vi ocê por aqui”. Seu Zé não foi o primeiro. Antes deles umas três pessoas juraram que está não é a primeira vez que faço a Estrada. Em Tapera um sujeito veio conversar comigo como se fossemos conhecidos. Jurava que eu já passado ali antes.
José Sebastião do Nascimento, o seu Zé, tem 75 anos. Mora logo ali, na dívida de Conceição com Pilar, e tava indo no comércio comprar uns mantimentos, como disse. “Mas o senhor tá forte pra 75 anos!” “Ih, meu filho, tô nada. Minha língua ainda não tá boa. Tive um negócio aí chamado PCC. Me levaram pra Conceição e depois pra Diamantina. Fiquei um mês sem falar nada, nadinha. O cérebro comanda mas a língua não responde, sabe?” Perguntei se ele já tinha encontrado com muita gente fazendo a Estrada. “Ih, é gente demais. O povo vem de jipe, vem de bicicleta, vem a pé… Dia desses tinha uma mulher fazer a pé, vê se pode. Eu não tenho coragem de fazer um trem desses não”. Tem medo de que, seu Zé?, perguntei. “Tá doido, menino? Nesse comunismo todo que anda o Brasil?” Gargalhei. Não era minha função explicar que era bem isso. Quando despedi, ele perguntou meu nome. Jefferson, eu disse. “Jefson. Esse nome aí eu tenho escutado muito na televisão…”
Na divisa de Conceição e Morro do Pilar, onde seu Zé mora, passa o rio Santo Antônio. Perto da ponte tem uma formação rochosa linda, com uma prainha em baixo, emoldurando o rio. E logo ali perto, do lado da estrada, uma construção antiga, encoberta pela mata, me chamou atenção. De pedra encaixada, deve ter fácil uns 200 anos, se não mais. E tá ali perdido, pura ruína.
Cheguei em Morro do Pilar logo depois de uma da tarde, depois de quase 30 km e 6,5 horas de caminhada. E agora, até amanhã, só descanso. O trecho daqui até Itambé, dizem, é o mais difícil da viagem.
(Sem Wi-Fi. Público mais fotos quanto tiver uma conexão melhor)
Marcelo
To curtindo “dimais” isso aqui
Jeff Santos
Tá sendo ótimo Marcelo… Abraço.