Capítulo 1: Rotina

“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.” (Cora Coralina, escritora brasileira)

Acordei do mesmo jeito que ontem. E antes de ontem. E no dia anterior. Havia ido deitar mais tarde do que gostaria e iria levantar mais tarde do que gostaria, mas mesmo assim fiquei na cama. Virei do lado, peguei meu telefone e fui ver as novidades. Primeiro as manchetes no jornal local, depois em um site de notícias. Vi as atualizações nos perfis dos meus amigos no Facebook, mesmo sabendo que poucos deles teriam atualizado desde a madrugada do dia anterior. Gastei algum tempo nisso, então fui para o Instagram e vi as fotos mais recentes. Quando chegou em uma que já tinha visto na noite anterior, continuei movendo meu dedo pra baixo, sem me importar que as imagens eram familiares. Meus dedos doíam constantemente, com se tivesse participado do Campeonato Mundial de Video Games.

Quando saí da cama já não tinha ressaca, apesar de ter bebido uma garrafa de vinho barato na noite anterior. E na noite antes dessa. E na outra. Intercalava as taças de vinho com filmes que havia baixado da Internet, quase sempre sucessos recentes em qualidade duvidosa e procedência mais duvidosa ainda. Depois passava mais alguns minutos no sofá, vendo assuntos sem relevância em meu Ipad. Ia pra cama tarde, sempre depois das 3 da madrugada e deitava ao lado da mulher com que vivia há mais de 20 anos – e que já dormia a algumas horas…

Durante o dia gastava mais tempo vagando sem destino na Internet. Redes sociais, sites de humor, leituras baratas, blogs de amigos, mais redes sociais, de novo sites de humor, episódios recentes de seriados, fotos, mais redes sociais. Eventualmente em algum momento entre as 8 horas que separavam a hora que saia da cama e minha primeira taça de vinho eu gastava alguns minutos fazendo algo produtivo: desenvolvendo o projeto de um novo evento ou respondendo o pedido de orçamento de algum cliente. Era essa a minha rotina desde que havia voltado da Austrália, havia cinco meses. Havia terminado um mestrado em gerenciamento de eventos e deixado de lado a garantia de um trabalho down under para viver de novo com ela. Tudo seria diferente desta vez, mentimos.

Não estava sendo. Apesar de nos amarmos e aos olhos das outras pessoas tudo parecer perfeito, o fato é que as coisas não estavam bem. Eu estava incomodado com a situação: as coisas não estavam se acertando pra mim desde que havia voltado. Com ela era diferente: ela tinha um emprego que adorava e fazia dinheiro suficiente para sustentar a filha e as duas netas (e agora também o marido). Eu havia deixado o emprego antes de me mudar e não havia conseguido outro desde que voltei. Há alguns anos, quase chegando aos quarenta, ela havia encontrado uma profissão que amava e lhe rendia um bom dinheiro. Eu havia me tornado especialista em quebrar empresas e destruir projetos que pareciam promissores. Ela tinha uma relação amorosa e saudável com sua família, apesar de sentir falta da mãe que morrera há cinco anos. Eu mal via meus oito irmãos e não tinha ido no velório do meu pai, que morreu no ano anterior, quando estava fora (e também não tinha ido ao enterro da minha mãe, que havia morrido quando eu tinha 23 anos). Ela não queria ter tido filhos, mas foi mãe aos 15 e cuidou da criança com todo o amor do mundo. Eu sempre quis ser pai, mas o máximo que consegui foi uma relação tumultuada com a filha dela. Ela tinha amigos com quem encontrava regularmente e relações que nutria. Eu passada dias, semanas, sem falar com outra pessoa, fechado em meu universo particular. Ela conduzia seu negócio de forma simples e natural, fazendo com que crescesse exponencialmente nos últimos dez anos. Eu me achava o fodão, com uma pós-gradução, um MBA e um mestrado no currículo, que conseguia escrever projetos sensacionais, mas que não conseguia levar ao final nem UMA das ideias que desenvolvia.

Estava claro o que não estava bem: eu.

Estava deprimido, sofria com a volta ao Brasil, depois de um ano e meio do outro lado do mundo, em uma das cidades com melhor qualidade de vida do planeta. Tinha dúvida se o caminho que tinha escolhido era o melhor. Não só o caminho recente, a última decisão, a de ter voltado. Me questiona, a cada momento, de todas as decisões que havia tomado desde a adolescência: ter largado o emprego estável quando tinha 18 anos, ter voltado à cidade natal e não ter ido para outro lugar, ter optado por Belo Horizonte e pelo curso de design que nunca terminei, ter casado quando tinha 23 anos, ter feito os cursos de pós-gradução que fiz, ter criado as empresas e projetos que criei. Me sentia em um barco em alto mar, sem rumo. Não sabia para onde iria, nem quando iria chegar. Pior: não sabia nem mesmo como tinha chegado aqui! Havia sido levado por impulsos, decisões precipitadas, pelo calor do momento. Fogo de palha. Questionava minha habilidades, meu conhecimento, minha capacidade. Me achava uma farsa. DJ medíocre, produtor picareta, empresário fracassado. Havia me tornado tudo aquilo que odiava. Eu era meu pior inimigo. “Soy un perdedor. I’m a loser baby, so why don’t you kill me?” (o refrão de Loser, faixa de Beck no álbum Mellow Gold).

Precisava fazer alguma coisa. Não poderia mais deixar as coisas tomarem aquele rumo. Precisava tomar as rédeas e guiar a minha vida. Iria chegar aos 50 dali a alguns anos. E se a vida realmente começa aos 40, ainda havia tempo para que eu começasse a viver a minha. Era hora de colocar em prática aquele plano de uma caminhada longa. Alguns dias vagando por alguma trilha ou estrada de terra. Fazer algum dos caminhos que havia pesquisado quando estava na Austrália, alguns meses antes.

Tomei, finalmente, a direção. E ela me levou a Tambaú.

Capítulo 2: Primeiro Passo

Foi depois de fazer a Manly to Spit, uma trilha nos arredores de Sydney, que comecei a pensar em fazer trilhas maiores. Ela é pequena: 10 quilômetros, 2.5 horas de caminhada em um dos cenários mais agradáveis que já havia visto. Ao final, tomando uma cerveja na Four Pines, cheguei à conclusão que andar era uma das coisas que mais me davam prazer. Andar sem saber quando chegar. Andar até seu corpo se exaurir e você começar a sentir o osso do seu calcanhar bater no chão.

***

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Cheguei a São Paulo e me instalei na casa de um amigo. Ficaria ali por dois dias, comemoraria o aniversário dele e no dia seguinte pegaria um ônibus para Tambaú. Não havia dado detalhes da caminhada em casa e também não diria nada a ele até o final da festa. Durante o dia, comprando tira-gostos e bebidas no supermercado ou à noite, fazendo drinks e batendo papo com os outros convidados – uma agradável mistura de cineastas, designers e produtores de TV – minha cabeça estava naqueles 500 quilômetros que iria enfrentar dali a dois dias. Já na madrugada, abri mais uma garrafa de vinho – a última que iria abrir nas próximas semanas – e contei meu plano.

– “Como assim, andar 500 quilômetros? Tá tudo bem?”

– “Tá, claro”, menti. “É que gosto de andar, você sabe. Então descobri esse caminho e resolvi fazer. É uma peregrinação, que sai de Tambaú e vai até Aparecida do Norte. Acho que vai ser legal”.

– “E onde fica essa merda de Tambaú?”, ele quis saber.

Também nunca tinha ouvido falar da cidade e sua escolha foi apenas pelo fato de que o caminho original saía de lá. Não escolhi o Caminho da Fé por religião ou crença: escolhi porque parecia o mais bem estruturado dos caminhos que olhei: o das Missões,no Sul; o da Estrada Real, em Minas; e o da Luz, no Espírito Santo. E já tinha estudado o mapa: sabia que de ônibus Tambaú ficava a 3 horas da capital.

Não existe melhor forma de descrever o Caminho da Fé como um Caminho de Santiago tupiniquim. Em todos os aspectos o caminho espanhol influenciou o brasileiro: nas setas amarelas presente em ambos, na distância que o brasileiro busca alcançar (mas está longe de conseguir), na peregrinação religiosa. O caminho é longo: são 420 km saindo de Tambaú. Resolvi faze-lo com calma, andando em torno de 28km por dia em média.

Foi no final do século passado que Almiro Grings, um empresário do interior de São Paulo, fez pela primeira fez o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Ele então começou a pensar na possibilidade de criar algo semelhante no Brasil, partindo de Águas da Prata, sua terra natal, e chegando a Aparecida, um roteiro já conhecido de romeiros. Após sua segunda travessia espanhola, em 2001, Almiro começou a arquitetar a criação de  uma versão brasileira do Caminho. Menosprezado por conhecidos, resolveu procurar a Arquidiocese de Aparecida. Para sua surpresa, outras pessoas já haviam feito propostas semelhantes, nenhuma com sucesso. Foi a articulação política de Almiro, que envolveu prefeituras, dioceses, paróquias, ONGs e associações comerciais que viabilizou sua criação. Foram dois anos de negociações e reuniões até a inauguração “oficial” do Caminho, em maio de 2003.

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– “Você sabe que Tambaú não é famosa só por causa do Padre Donizetti, né?”, me perguntou Edilson, o solícito atendente no Departamento de Turismo da cidade.

Eu não tinha ideia de quem foi Padre Donizetti. Muito menos de que Tambaú era famosa. Só depois fui saber que Donizetti atrai anualmente milhares de devotos à cidade onde fez sua vida religiosa, todos crentes nos milagres atribuídos ao padre nos anos 50. Nascido em Minas ainda no século XIX, ele havia falecido em 1961 e seu processo de beatificação corre desde 2009 no Vaticano.

– “O Joelmir Betting nasceu aqui. E tem um compositor tambauense que você conhece pelo menos duas músicas: Nelson Biasoli”, continou o atendente, sorrindo.

Quem?

– “Foi ele que compôs a música da visita do Papa João Paulo II ao Brasil, aquela ‘à benção, João de Deus’…”. Algo remoeu na minha memória. Ainda não tinha 10 anos na época da primeira visita do Papa ao país. Para minha mãe, João Paulo era deus em forma de gente, o homem mais bondoso que existia, seu ídolo. Tanto que eu havia comprado pra ela, com 50 cruzeiros da minha mesada, a biografia em quadrinhos de Karol Wojtyla. O poster que acompanhava a revista ficou durante muitos anos na nossa parede.

– A outra música dele é ainda mais famosa: ‘eu, sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor’…”. A música havia sido composta nos anos 40, ele me disse, para os jogos estudantis regionais. Ficou esquecida por anos, até ser redescoberta pela torcida da seleção brasileira de futebol e por apoiadores de partidos políticos brasileiros. Aquelas duas melodias iriam demorar alguns dias pra sair da minha cabeça. O cara era realmente um hitmaker.

***

Foi o Edilson também quem me deu as primeiras informações sobre o caminho: o pastel do Maurão, os morangos de Estiva, o vinho de Andradas, o bar da Zeti. Falou também sobre a ideia de um caminho novo, o da Santidade, até Cássia, terra natal do Padre Donizeti. E do impacto econômico do caminho para as cidades por onde passa. “Veja bem”, contou ele, “você é a pessoa número 7324 a sair daqui. Desde o dia 2 de abril foram quase 200. E não é nada não é nada cada pessoa deixa nada cidade uns cem reais. Gera emprego. Agora veja bem: se somar quem sai das outras cidades devem chegar aí numas 15 mil pessoas, desde 2003. São umas 1200 pessoas por ano. Imagina isso para uma cidade como Tocos do Mogi, que tem 4 mil habitantes?”. Ele tem razão.

Peregrinar até Aparecida é das atividades mais conhecidas dos católicos brasileiros. A cidade, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, existe desde o século XVI e o título de cidade santa surgiu em 1717, quando três pescadores encontraram uma imagem de Virgem Maria decapitada nos fundos do rio Paraíba do Sul. A cabeça veio depois, junto a peixes em abundância, mesmo não sendo época de pesca. Era um milagre.

A primeira capela para a estátua foi aberta ao público em 1745. Peregrinações à imagem foram registradas pelos alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius que em 1820, depois de uma viagem de 3 anos pelo Brasil, voltaram à seu país natal com 9.000 espécies de plantas e animais, além da descrição da capela: “It was erected about seventy years ago, a long period in this country; it is partly built of stone, and adorned with gilding, bad painting in fresco, and some oil. The wonder-working image of the Virgin attracts many pilgrims from the whole province, and from Minas“ (Spix & Martius: Travels in Brazil in the years 1817-1820, Volume the First, London, 1824). O grande número de peregrinos obrigou a construção de uma igreja maior, a Basílica Velha, que foi erguida entre 1834 e 1888.  Da capela original a Basílica mais recente, inaugurada em 1980, depois de 35 anos de construção, guarda apenas o fato de também ter adornos em afrescos e óleo. ambos mal pintados. É um monstro com quase 150 mil metros quadrados de área construída (maior que o Estádio do Maracanã) e um estacionamento de 285 mil metros quadrados que em nada – NADA! – se difere dos estacionamentos dos parques temáticos da Disney. Era esse o meu destino. Com um diferencial: minha montanha russa seria pelas estradas e trilhas de Minas, subindo e descendo os quase 2000 metros da Serra da Mantiqueira. Onde é estava a minha cabeça?

Capítulo 3: 420 km

A placa de 420KM ficava na porta da pousada. Eu era o único hóspede. Acordei às 5h e tomei o farto café da manhã. Peguei a pequena mochila – não pesava mais que 5 quilos e saí pelo portão lateral.

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Os primeiros quilômetros do Caminho da Fé a partir de Tambaú são planos e quase monótonos. Em uma das casas que passei, saindo da cidade, uma pintura na parede defendia: “vida caipira + saúde”. Cruzava plantações de cana e comia poeira dos caminhões bitrem que passavam por mim. Cruzava asfalto, voltava para a estrada de terra, mas nunca ficava muito longe da civilização. Quase me perdi em uma das plantações, mas em menos de 10 minutos vejo uma casa e consigo informações sobre o caminho correto.

O destino do dia é a Pousada Nossa Senhora do Desterro, em Casa Branca, a 30 km de onde saí. Na chegada da cidade um chafariz, na entrada de uma igreja, abastece a população. Sento pra ver o movimento de gente vindo de carro e bicicletas pra encher galões. Descanso e sigo viagem. Quase uma hora depois começo a sentir que Casa Branca está ficando pra trás. Tem alguma coisa errada. Ninguém na cidade sabe onde fica a pousada. Ligo. Nossa Senhora do Desterro é a igreja do chafariz. A pousada é um quarto da casa paroquial. Ando quase 10 km a mais que o previsto. A chuva me pega no retorno. Ninguém sabe onde a responsável está. Estou molhado, cansado, com fome. Mas pelo menos sei que vou ter uma cama e um chuveiro esta noite.

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De novo sou o único na pousada, um dormitório com uma dúzia de camas e um chuveiro anexo. Durmo cedo e acordo ainda escuro, para mais um dia de caminhada.

Pelo mapa disponível no site do Caminho da Fé, de Casa Branca até Itobi são 14km. De novo passo batido pelo Hotel Ypê, onde deveria carimbar meu passaporte. São 8 km a mais de caminhada, além dos 16 de Itobi até a cidade de Vargem Grande. Ao final do segundo dia já andei mais de 75 quilômetros, mas percorri menos de 60 quilômetros do trajeto. Apesar disso me sinto feliz. Cada etapa completada é um desafio vencido. A certeza que meu caminho sou eu quem faço.

***

Passo esse segundo dia pensando que para realizar uma caminhada como essa é preciso entender alguns pontos que podem ajudar bastante em sua pessoal e profissional.

Antes de tudo é preciso preparação e planejamento. Realizar o Caminho da Fé em períodos de chuva, sol forte ou frio intenso pode interferir completamente na experiência. Se propor a andar 30 quilômetros por dia sem ter o preparo para isso também é um fator a se levar em consideração. (Antes de começar o passeio me sentia fisicamente muito bem. Nos últimos meses corria regularmente, entre 5 e 10 km por dia. Havia feito três meia-maratonas. Mas nos últimos meses – desde que havia voltado para o Brasil – havia deixado essas atividades de lado. Deitava tarde, acordava mais tarde ainda, passava o dia sentado e sabia que algo ali não estava bem. Sentia falta do ar livre, da paisagem, da dor. Correr em esteira é algo que não consigo conceber: qual em sentido em se usar uma máquina para se exercitar em um local fechado? Correr pelas ruas de Belo Horizonte, onde morava, é outra coisa inconcebível: como disputar o espaço com carros e buracos? Ficar uma hora dando voltas em uma mesma praça tão pouco me agradava. A repetição, a monotonia, os mesmos rostos vindo em sua direção de novo, e de novo, e de novo, tudo isso me desanimava. O que me incentiva é a vista, a paisagem, os caminhos. E nada  eu tinha. Então troquei as corridas e as caminhadas pelas taças de vinho e o sofá).

Além de planejar e preparar, caminhar longas distâncias requer também um objetivo. Qual seu destino? Certamente existem outras formas de se chegar, algumas bem mais rápidas que uma caminhada a pé. Mas estas não são a forma que você escolheu. Não importa se seu objetivo é andar 420 ou 25 mil quilômetros. Mais que o destino, o que importa é a jornada. E a forma como você se propôs a fazê-la. Mantenha-se firme a seus objetivos, sem truques, sem caronas, em atalhos. Planeje, prepare e siga. Você vai chegar lá. Não é, Sarah?

Capítulo 4: Pra Cima

“Eu fui à floresta porque queria viver livre. Eu queria viver profundamente, e sugar a própria essência da vida… expurgar tudo o que não fosse vida; e não, ao morrer, descobrir que não havia vivido.” (Henry David Thoreau, ensaísta, poeta e anarquista americano)

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O caminho entre Tambaú e Vargem Grande do Sul dá ao viajante uma clara imagem do que é o interior do estado de São Paulo. Grandes plantações de cana, grandes plantações de laranja – algumas das quais à beira da estrada, fáceis de serem acessadas por quem faz o caminho – e acima de tudo uma planície sem nenhuma surpresa. Retas e mais retas. Dois dias sem nenhuma elevação significativa. É um trecho ótimo para esquentar os músculos e preparar a mente. Porque, afinal, você está indo em direção à Minas Gerais.

O primeiro desafio é a Serra da Fartura. Partindo de Vargem Grande do Sul são 27 quilômetros de subida constante até o distrito de São Roque da Fartura, em uma alteração de altitude de 700 metros. Dali é preciso descer quase a mesma variação nos 16 quilômetros seguinte até a cidade-sede, Águas da Prata.

É o trecho mais complicado do passeio até o momento. É também o mais longo – ao final dia havia percorrido 47 quilômetros – e o mais solitário. Na subida da serra, nenhuma casa. A excessão é a Pousada da Dona Cidinha, quase no topo do mundo. Com uma cachoeira particular, é um dos pontos prediletos dos romeiros. Não é o meu caso: Dona Cidinha havia me dito por telefone, uns dias antes, que estaria fora e a pousada estaria fechada. Sigo caminho. Na descida da serra, nenhuma outra habitação. Sozinho, sem barulho de carros e da cidade, é a hora de presenciar corujas, tucanos e o encontro barulhento de dezenas de maritacas. Uma recompensa pelos longos trechos dos primeiros dias.

Foram mais de cem quilômetros em três dias de caminhada. E nesse estágio seu corpo começa a te mandar mensagens. Uma dor aqui, um incômodo ali. Você não é mais o mesmo, nem fisicamente, nem mentalmente. É preciso foco e persistência para suportar os desafios. E assim como em sua vida pessoal e profissional, a caminhada mostra que subir pode ser difícil: mas saber descer é ainda mais importante. Se nos momentos de ascensão é preciso fôlego e disposição, nos momento de descida é preciso ter controle. Saber o momento certo para pisar no freio e parar. O perigo está nos períodos de baixa. Pra baixo todo santo ajuda my ass.

Capítulo 5: Passado

Minha família cresceu na roça. Por roça – é assim que a gente fala até hoje, quando vamos visitar algum familiar que ainda mora por lá: vamos lá na roça? – eu digo Boa Vista, uma vila que não está no mapa. Nem no Google Maps ela existe. Boa Vista é um vilarejo com não mais que um dúzia de família morando nele. O distrito mais perto é Albert Issacson, hoje com pouco mais de 1000 habitantes. Antes chamada Pary-mirim, Albert Issacson cresceu em torno de uma estação de trem da Estrada de Ferro Oeste de Minas, aberta em 1880. A linha ligava Barra do Paraopeba a São João Del Rey e o senhor Issacson, dizem, foi um de seus engenheiros. Desativada nos anos 60, o único trecho da EFOM que ainda existe é o famoso passeio de maria fumaça entre São João e Tiradentes.

A cidade-sede do distrito é Martinho Campos. E é pra lá que a gente pegava o ônibus quando saíamos de Divinópolis, para onde minha família havia se mudado no final dos anos 60, em busca de oportunidades. O problema era que de Martinho Campos a Boa Vista não existia nenhum tipo de transporte. Carros eram raros e mesmo que passasse algum não era fácil conseguir carona para todos: eu tive 8 irmãos, e pelo menos a metade viajava com minha mãe quando íamos visitar a avó.

O jeito era fazer o caminho a pé. São 5 léguas de Martinho Campos a Boa Vista. Cerca de 25 km. Que a gente fazia caminhando todas as vezes que íamos visitar a família. Não me lembro com clareza das temidas 5 léguas: era o caçula das crianças. Mas a caminhada foi certamente minha primeira peregrinação. Vencer as 5 léguas para se chegar a um objetivo claro: curtir as férias na casa da vó.

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***

Na noite anterior a sensação era que passaria uma semana deitado, sem conseguir levantar as pernas, sofridas por conta dos 100 km percorridos. E quando saí de Águas da Prata em direção a Minas meu corpo ainda sentia o esforço, mas sentia pouco. Assim como na vida, as caminhadas te ensinam que o tempo tudo cura, seja a dor muscular da caminhada ou a perda da avó. Caminhar te ensina que é preciso dar tempo ao tempo. É preciso entender e dar a devida importância à sequência: há sempre algo mais depois da curva. Ou do morro.

Segui subindo a serra em direção ao Pico do Gavião, passando por fontes de água mineral e rampas de decolagem de asa delta e voo livre. Decolagem de asa delta e voo livre: já dá pra imaginar o quanto eu subia. O local está a 1650 metros, quase 1000 acima de Águas da Prata. E na divisa de São Paulo e Minas Gerais, meu estado natal.

Cruzar fronteiras sempre exerce um fascínio em caminhantes. A cada cidade, a cada estado, a sensação que seu destino se aproxima traz um alívio àqueles que se aventuram por longas caminhadas. Chegar em Minas é ter a sensação que estou em casa, mesmo estando a 500 km de Belo Horizonte. A partir daquele momento era como passear pelo meu quintal, pelas minhas montanhas, por sotaques que me eram familiares. A paisagem era outra: nada de planícies. As plantações de cana e laranja dão lugar às plantações de café do sul de Minas. Até Andradas, a cidade da divisa, são mais 30 quilômetros.

A noite é em um hotel, com direito a pizza no jantar. Afinal, estou em Andradas, a mais italiana das cidades mineiras. Situada a quase mil metros de altitude, Andrades tem uma surpreendente produção de vinhos. Só não produz as uvas, importadas do Sul. Mas ali nos arredores da cidade estão instaladas meia dúzia de vinícolas de famílias que mantêm a tradição italiana. A qualidade do produto, como esperado, é duvidosa: troco a taça do merlot ácido por água e para minha surpresa também não consigo comer inteira a pizza que pedi.

No dia seguinte, o destino é Serra dos Lima. A placa na saída da cidade da tom do passeio, quase uma escalação de time de várzea: Grotão – Tira Fogo – Macuco – Campestrinho – Barra – Gabirobal – Graminea – Serra dos Lima. Ando mais que tinha imagino que andaria. Não estou cansado: minha vontade é continuar. Acrescento Crisólia e Ouro Fino, totalizando quase 50 km de caminhada no dia.

Em Crisólia paro pra almoçar – pela primeira vez desde o início do passeio – no Bar da Zeti. Uma das lendas do Caminho da Fé, Zeti mantém um livro onde colhe assinaturas de todos aqueles que passaram por ali fazendo o caminho, desde sua inauguração. Era primeiro de junho, aniversário de Divinópolis, minha terra natal, e sou o peregrino de número 16.593.

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Zeti conta histórias de outros caminhantes e de como se envolveu com o Caminho. De seu carinho pelos peregrinos e da importância dessas pessoas para seu negócio. Zeti parece lembrar de todos eles: quem chegou ali a pé, quem passou de bicicleta, quem fez o Caminho de moto. Mesmo se não falasse, o Bar da Zeti conta as histórias por si só, em suas paredes repletas de fotos, bilhetes, adesivos, quadros e lembranças de gente que resolver peregrinar por aquelas estradas.

Mais 10 quilômetros e chego na cidade de Ouro Fino, meu local de pernoite. A pousada é simples mas tranquila. Uma casa na região central, perto da igreja e restaurantes. As paredes de madeira deixam passar o som, mas mais uma vez estou sozinho. Chego e faço uma espécie de ritual, que venho fazendo desde o primeiro dia: abro a mochila e separo metodicamente tudo na cama: as duas camisas, o calção, boné, um par de meias, kit de primeiros socorros, kit de higiene, celular e carregador, uma blusa de frio, um corta-vento, uma calça de compressão, meus documentos. É tudo o que levo. Separo o que vou usar no dia seguinte, organizo os outros materiais e volto pra mochila, pronto pra seguir viagem. Lavo no banho o calção, a camisa e a meia do dia e deixo secar na janela. Doem as pernas, mas olhando pra trás mais uma vez me sinto feliz pelos 50 km de caminhada.

Capítulo 5: Limites

Venho caminhando mais que esperava. Quando planejava o Caminho minha meta era fazer, em média, 25, no máximo 28 km por dia. Estou dois dias a frente do previsto, e continuando neste ritmo chego em Aparecida em 12 dias, e não 14. Como já havia reservado pousadas em todos os destinos, tento mudar as reservas. Sem sucesso. Nem me passa pela cabeça que o feriado de Corpus Christi é nos próximos dias. As pousadas estão lotadas e caso adiante  a chegada estarei em Aparecida justamente no domingo de Páscoa. Caos. Melhor tirar o pé do acelerador e programar um dia mais leve, pra evitar a multidão.

Assim, saio de Ouro Fino com o objetivo de andar apenas os 10 km até Inconfidentes. Saio mais tarde que o usual – por volta das 9h – e chego na pequena cidade ainda antes do almoço. Logo na entrada paro no Bar do Maurão, um daqueles outros pontos conhecidos por todos que fazem o Caminho. Assim como a Zeti, o Mauro conhece o circuito desde sua criação. É cheio de histórias, e o papo flui enquanto como um pastel. Ele me conta sobre a cidade, sobre outros caminhantes que já passaram, sobre o grupo de São Carlos que vem atrás de mim. “Ontem passou uma pessoa aqui de bicicleta e me contou de você e desse pessoal. São cinco pessoas, vindo de São Carlos, e devem chegar por aqui hoje a tarde. Hoje também deve chegar um caminhante lá da sua terra. Ele está vai começar o Caminho aqui e vocês podem seguir juntos”. Não me agrada a ideia. Quero fazer a caminhada sozinho, sem ter que esperar por outra pessoa.

Mauro também me conta sobre a cidade e sobre sua família, a esposa, as filhas. “Minha filha tem uma loja de artesanato perto de onde você vai ficar”, ele me conta. “Ela fez uns crochês nas árvores ali em frente à igreja. Você vai ser”. A informação passa batido, mas não por muito tempo. Saio do bar e sigo na rua principal da cidade, em direção à minha pousado. E mais alguns passos adiante sou arrebatado pela beleza do trabalho da filha do Maurão. O que ela fez em meia dúzia de árvores centenárias e de uma beleza sem igual. Um trabalho de colagem de diferentes tipos de pontos de crochê, em diferentes cores, que cobrem troncos de galhos e transformam a rua em uma galeria de arte urbana.

Chego na pousada, deixo a mochila, tomo um banho e volto ao bar pra dar os parabéns ao Maurão.

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Capítulo 6: Riscos

Sair assim caminhando, por estradas onde passa quase ninguém, sempre desperta perguntas das outras pessoas. “Mas não é perigoso?, E se aparecer alguém?, Mas sozinho?, E se você tiver um troço no meio do caminho?, E bichos? Afinal, porque você está fazendo isso?”.

Não é que eu saia sem pensar no que pode acontecer. Eu simplesmente me antecipo ao risco. Por isso a mochila pequena, sem chamar atenção de outras pessoas. E o pequeno tripé na mão, pra espantar os cachorros. Mas na maioria das vezes caminho jogando  “E se?”. É assim: penso no que eu faria se algo acontecesse. “E se eu fosse ficado por uma cobra, o que eu iria fazer?”. “E se naquela árvore ali na frente um enxame de abelhas me atacar, pra onde eu corro?”. “E se enquanto eu estou aqui no meio do nada o mundo for atacado por extra-terrestres e eu chegar em Tocos do Moji e encontrar uma cidade deserta, sem ninguém na rua pra me receber?”.  De todas as perguntas, a última é a mais constante. E a mais recorrente na sua cabeça durante a caminhada. A busca pela resposta segue o tempo todo. Afinal, porque diabos estão caminhando já a uma semana?

Os motivos quase sempre se encaixam em duas categorias: as caminhadas são uma forma de correr de algo. Ou a busca por alguma coisa. No meu caso era um pouco dos dois: corria da vida que estava levando – e que não me agradava – e buscava respostas para perguntas que ainda não tinha.

***

Quando cheguei a Tocos do Moji, por alguns minutos cheguei a achar que todos na cidade haviam mesmo sido abduzidos. Ninguém nas ruas ou no Bar do Nico, onde deveria buscar informações sobre a pousada da Tonha, meu pouso da noite. Só depois de chamar e bater palmas que alguém aparece me indicando a direção, na saída da cidade.

O mesmo se repetiu em Consolação, a cidade seguinte. Com menos de 2000 habitantes, Consolação não tem mais que uma praça, um par de ruas, duas pousadas e uma parada de ônibus. Passei a noite no Casarão, um misto de pousada e restaurante ao lado da praça que serve de ponto de parada de ônibus.

O caminho seguia a leste, cruzando estradas de terra, casas abandonadas, bares que pareciam sem donos ou clientes. Eventualmente iria cruzar de novo a divisa de Minas com São Paulo e estaria a poucos quilômetros – não mais que 100, um quarto do previsto – do meu destino final.

Passei pela imensa fazenda Pedra Branca e pela festa que acontecia no bairro de Catagalo. Só quando vi o marco na estrada que me dei conta que não havia deixado Minas: estava voltando ao estado. A estrada serpenteia pela divida, fazendo com que o caminho vá a São Paulo e volte a Minas para então voltar em definitivo à terras paulistas.

Passei também por Luminosa sem dar muita atenção à cidade. Só quando comecei a subir a serra, em direção à Pousada da Dona Inês, que me dei conta que subia a serra da Mantiqueira. Ao longe podia ver o Observatório do Pico dos Dias. A casa da Dona Inês e do Seu Pedro fica no meio da serra. Na volta a vegetação nativa e bananeiras, que Seu Pedro vende na cidade. A pousada foi crescendo com a ajuda do pai de Inês e hoje consegue abrigar duas dezenas de caminhas. Apesar disso, mas uma vez eu era o único hóspede.

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 A vista da porta da pousada é de tirar o fôlego. Passei a tarde ali, contemplando a serra e as montanhas de Minas. E no dia seguinte, com o sol nascendo, foi só seguir a estrada por mais alguns metros para ter certeza do quão especial é o local. Nuvens cobriam a cidade, dando a ideia de um rio branco correndo no vale.

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Continuava subindo, e uma hora depois estava a quase 1500 metros de altitude, na divisa entre Luminosa (MG) e Campos do Jordão (SP). Achava que dali pra frente seria apenas descida, mas a cidade paulista está ainda mais acima, a quase 1700 metros. Me causava estranhamento voltar a uma cidade “grande”. Apesar de Campos do Jordão não tem mais que 50 mil habitantes, isso já era pelo menos 10 vezes mais moradores que Luminosa, o distrito anterior. Estava voltando ao asfalto, depois de dias por estradas de terra. E estava saindo de Minas, depois de uma semana em meu estado natal.

Capítulo 6: Destino

Estar de volta ao estado de São Paulo é ter certeza que o destino está próximo. Os quilômetros finais do Caminho da Fé desafiam qualquer caminhante. Depois de dias andando por estrada de terra, na saída de Campos do Jordão o primeiro desafio são cerca de dez quilômetros pelos trilhos e mourões da estrada de ferro que liga Campos do Jordão à Pindamonhagaba. A princípio a vista do alto da serra é compensadora. Mas a partir dali são mais de 1200 metros de declive. E depois, como que querendo mesmo desafiar o caminhante, é preciso enfrentar asfalto, tráfego e barulhos. Tudo aquilo que você evitou nas últimas semanas lhe é entregue de uma vez, sem outra opção de caminho ou retorno.

O último trecho, até Aparecida, é decepcionante. Apesar do desejo de completar o desafio e o caminho original, a vontade é pegar um desvio (ou carona). Quando Aparecida surge, é aquela cidade pobre, feia, sem características próprias e dominada por aquela aberração da catedral. Tudo gira em torno do turismo da fé: das pousadas destinadas aos fiéis às fábricas de estátuas e imagens sacras. O centro comercial é, na verdade um grande estacionamento de ônibus. A rodoviária, fora do período de feriados religiosos, é um prédio quase abandonado.

Entro no Santuário pelo estacionamento, com músicas e gravações pedindo aos turistas que recordem onde estacionaram seus carros. Tal qual uma Disneylândia, onde o Mickey é a reprodução de uma imagem achada no fundo de um rio. Passo rápido pelos corredores, lojas de souvenirs e encontro a secretaria, onde pego meu certificado. Saio dali e pego o primeiro ônibus de volta a São Paulo.

Na viagem fico pensando na velocidade que viajo. Que a pé talvez seja a velocidade ideal para conhecer lugares. De dentro do ônibus tudo passa rápido e nada se prende, nem meus pensamentos. Tento revisar tudo aquilo que pensei naquelas últimas duas semanas, sem sucesso. Os pensamentos passam rápido de um pra outro, assim como as árvores na estrada. Imagino que também na vida é importante parar, reavaliar e viver mais devagar.