Distância do Dia: 38,36 km. Distância Total: 234,49 km. Objetos que perdi: 1.
Quando falei ontem com o Paulo Henrique que iria sair antes das 6 ele insistiu para que eu ficasse pelo menos até 6:15, que ele fazia questão de preparar o café da manhã. O Paulo é o dono da Pousada Vovô Juca, em Morro do Pilar. Além de ter o chuveiro mais quente da viagem até agora (daqueles que você tem que deixar no modo verão, senão não aguenta), tem uma localização excelente: ao lado da igreja.
Quando cheguei ele não estava. Subi as escadas (sempre um suplício) e quando perguntei o preço da diária quase caí pra trás. A atendente me disse que não aceitava cartão, mas que assim que o dono chegasse ele daria um jeito, eu não precisaria preocupar. Wi-Fi tem, cama confortável também, além do chuveiro quente que ela já havia dito, então pra mim tá ok. Antes de entrar pro quarto perguntei de novo o preço, vai que eu tinha escutado errado. “35 reais”, ela respondeu.
Eu estava com um problemão. Em Conceição não tinha agência do meu banco. Em Morro também não. E nem nas próximas 3 ou 4 cidades. Eu tinha um dinheirinho comigo, mas precisava sacar mais ou pagar as próximas despesas com cartão. Só que em muitas dessas localidades, lugar que aceita cartão é raro. Meu plano a era convencer o Paulo a me fazer uma jogada: eu pagava a mais, ele descontava as taxas e me devolvia o dinheiro. O plano b era transferir da minha conta pra dele. Quando o encontrei pela primeira vez, Paulo Henrique já veio me contando a história do Morro, as cachoeiras, as festas populares – incluindo o Tutu da Madrugada, ideia que iria apropriar fácil se tivesse um bar. Quando comentei a história do dinheiro, me chamou pra ir até uma loja de material de construção e contou pro balconista a história. “O senhor precisa de quanto?”. Cem reais no meu bolso, a pousada paga e mais 5 reais de taxa.
Na volta, Paulo Henrique me contou sua história. Nasceu no Morro do Pilar, mas morou em BH por nove anos. Foi tentar medicina, “como se diz, por incentivo do meu pai”. Durante cinco anos passou na primeira etapa e bombou na segunda. Encheu o saco, voltou pra sua terra natal e montou um comércio. No início dos anos 2000, com a mineração em alta na região, montou um supermercado e alugou cinco casas, que usava como pousada. Até que teve um infarto. Num domingo, começou a sentir os sintomas. O médico da cidade mandou ele pra casa, era stress. Até que um amigo da época de estudante, agora médico residente, “resolveu, do nada, vir pra cá num domingo. Ele botou um short e uma camiseta e veio. Quando me viu mandou direto pro hospital”.
Paulo fechou as casas, os supermercados e deixou só a pousada do Vovô Juca. Mas tá construindo outra, grande, na entrada da cidade. O pagamento em cartão na loja de materiais é pra cobrir o pendura dele.
No café da manhã, com aquela mesa com uma incrível variedade de biscoitos e pães, ele me conta que ele e a esposa que fazem tudo. Não vendem pra fora: é só pra pousada. “E como você aprendeu?” Na época do supermercado Paulo Henrique tinha um padeiro que faltava todo dia posterior a alguma festa. Era ter festa e a cidade ficar sem pão. Inconformado, mandou o sujeito embora, fez um curso básico e começou a pegar dicas com as quitandeiras antigas da cidade. Então biscoito tal só pode mexer pra um lado, o outro não pode pegar vento, o terceiro tem que mudar um ingrediente, e cada um é melhor que o outro.
A estrada até Itambé do Mato Dentro é longa (35 km) e tem três subidas extensas, daquelas de 2 ou 3 quilômetros cada. Mas esse não é o principal problema. Durante todo o percurso a terreno é ou pedra (soltas, de todos os tamanhos) ou poeira, que chegava a encobrir o meu tênis por completo quando pisava. Foi numa dessas que perdi o disco de um dos bastões. Os dois terrenos deixam a caminhada muito mais complicada. É preciso mais concentração, atenção onde pisar e esforço físico.
No início o caminho sai margeando o rio Peixe, de água escura. Pouco depois dessa parte, olho pro lados vejo um troço jogado na beira da estrada. Pedaços de pano branco e azul se espalhando por alguns metros. Chego mais perto e dou uma fuçada com o bastão: são roupas de recém-nascidos. Um enxoval completo, já sujo da terra. Vou pegando um por um, dando uma sacodida e colocando em uma das minhas sacolas reservas. Pode ter caído do caminhão de mudança, pode ter caído da moto ou alguém pode ter perdido o bebê e jogado o enxoval da criança fora, desgosto. Boto mochila, com a intenção de doar na igreja em Itambé. Depois da segunda subida, faltando uns 10 km pra chegar, o que domina a visão é a Serra do Cipó e a Serra do Intendente, majestosas, se esticando até aonde a vista alcança. E eu já estou um bagaço. O terreno, o calor e o peso extra foram me cansando mais que o normal.
Foram precisos mais de 8 horas pra chegar a Itambé. A igreja estava fechada, e levo o enxoval pro hotel. Aqui tive que colocar meu plano B em ação: explico a situação pra Tatiana, que me passa a conta pra transferência. E conto do enxoval: ela diz que conhece uma moça que mora na roça e está grávida. Fica com as peças pra lavar e levar pra ela.
Flávio Soares
No próximo texto que você contar detalhes sobre a unha, vou deixar spoilers das suas séries aqui. Rs.
Por sinal, gostei muito de The Preacher