Travessia Alto Palácio – Serra dos Alves (ou: mea culpa, mea maxima culpa)

Deixa eu começar o ano fazendo um mea culpa: eu faço muito pouco trilha no Brasil. Não conheço quase nada dos caminhos clássicos daqui. Serra Fina? Nunca fiz. Chapada Diamantina? Não conheço. Lapinha-Tabuleiro? Pode me xingar, mas nem essa… No meu currículo tem a Appalachain Trail cruzando 14 estados americanos. Tem Milford Sound na Nova Zelândia. Tem Torres del Paine, El Chaltén, Ushuaia, Austrália, Japão, Tailândia, Laos… Brasil mesmo que é bom necas.

Sim, a culpa é minha. Por alguns motivos explicáveis – mas não desculpáveis. Comecei a fazer trilha tarde – o que prova que não, você não está velho pra isso como pode estar imaginando. E quando estou no Brasil muitas vezes estou mergulhado em trabalho. Daí quando aparece uma oportunidade opto por correr meio mundo ao invés de ficar por aqui.

Mas, ó, fica aqui o meu compromisso de mudar isso. Esse ano ainda. O primeiro passo eu já dei: aproveitei um final de semana com a família na Serra do Cipó e fui fazer a travessia Alto Palácio – Serra dos Alves. É uma daquelas travessias clássicas, pelo menos aqui em BH. Todo mundo já fez – ou conhece alguém que fez. Menos eu. Assim, passamos o final de semana curtindo cachoeira e passeios em Santana do Riacho e na segunda cedo Alê me deixou na portaria do ParnaCipó pra cruzar aqueles quase 40 km.

Alto Palácio – Serra dos Alves é um dos primeiros trechos sinalizados da TransEspinhaço. A ideia é sinalizar toda a serra e esse trecho, pela popularidade, foi por onde o pessoal começou. As pegadas amarelas e pretas estão espalhadas por (quase) toda a trilha. Onde ainda não tem pegada tem uma marcação com varetas pintadas de amarelo.

O grande atrativo da caminhada é o Travessão, marco da Serra do Cipó. Ali marca a divisa das bacias dos rios Doce e São Francisco: de um lado o Ribeirão do Peixe, do outro o Ribeirão Capão da Mata. Quando fiz a Estrada Real ficava olhando de longe aquela belezura.

Comecei a trilha na portaria do PanaCipó de Alto Palácio, na MG10. Só a estrada já vale o passeio. A Serra do Cipó é linda e dá pra gastar uma manhã parando em todos os mirantes e descobrindo quedas d’água. Da portaria, onde um portal marca o início da travessia, você sobe até uma torre de transmissão e começa a ter a partir dali uma visão ainda mais privilegiada da serra. A flora é incrível. É bom ficar atento a todos os detalhes. A trilha é bem batida nesse início e é fácil, mas é sempre bom ter um GPS ou a trilha salva em seu celular. Ainda não dá pra confiar apenas nas pegadas amarelas (senti falta, por exemplo, de uma marcação de confirmação na torre…).

O destino do dia, pós-Travessão, é o abrigo da Casa de Tábuas, distante uns 16 km do marco inicial. Espere encontrar pelo caminho lindas cachoeiras e pinturas rupestres nas pedras do lugar. Exige um bom preparado, mas nada demais. Indo com calma e curtido o caminho dá pra sair cedo e chegar ali no meio pro final da tarde.

A Casa de Tábuas é um dos dois abrigos da Travessia. O parque só permite que se acampe nas proximidades desse abrigos, que tem boa estrutura para o caminhante. Até exagerada, eu diria: um fogão de lenha descessário – é probido fazer fogo no parque – e consequentemente um acúmulo de panelas e utensílios, além de restos de ingredientes que só fazem atrair roedores e insetos.

Cabe um comentário aqui: confesso que pensei que iria encontrar lixo pelo caminho, o que felizmente não aconteceu. A manutenção do parque é exemplar. Exceto por pequenos pedaços de plástico caídos aqui e acolá, a trilha é bem conservada. Nos abrigos a coisa se inverte: latas, vidros, embalagens, papel higiênico, sacos de lixo deixados pra trás, tudo se amontoa. Merecia um multirão pra tirar todas essas coisas desnecessárias ali, incluindo as panelas e o próprio fogão à lenha. Bom seria também deixar exposto ali informações sobre práticas e princípios de baixo impacto ambiental, como os do Leave No Trace.

Se até ali o caminho é fisicamente  mais desgastante que o resto da trilha e a sinalização em geral bem feita, a partir dali a coisa se inverte. Com exceção de uma subida partindo do abrigo a trilha fica mais fácil, mas a sinalização praticamente some. Junte a isso a vegetação alta e tem aí um bom lugar para caminhantes menos experientes se perderem. Eu mesmo saí da trilha duas ou três vezes e precisei consultar o GPS. O caminho é também menos cinematográfico que o do primeiro dia. Até o próximo abrigo, Currais, são mais 11 quilômetros que podem ser vencidos em 4 ou 5 horas facilmente. Saindo cedo dá pra chegar lá na hora do almoço.

De novo a situação do abrigo não é das mais exemplares. Ao contrário da Casa de Tábuas, esse é de alvenaria e tem fossa sim, mas próxima demais do curso d’água. Uma grande quantidade de papel higiênico se acumulava ali e dentro da casa velhos colchões juntavam poeira e mofo. Na entrada, latas de cerveja vazias. Decidi nem ficar: segui caminho pra completar os 12 km restantes até a Serra dos Alves.

De novo fácil e tranquilo, e também bonito e agradável, até lá é possível passar pelo cânion Boca da Serra e pelas cachoeiras da Lucy e dos Cristais. Vale a parada para uma refrescada.

Serra dos Alves é um paraisinho parado no tempo. Não pega celular, tem umas poucas dezenas de casas e é super agradável. Mas se você depender de transporte pra sair dali pode ser complicado – e caro.  Ônibus só às sextas-feiras, partindo de e para Itabira. Locais fazem o transporte até as cidades mais próximas, como Ipoema ou Senhora do Carmo, onde você pode pegar um ônibus para Itabira e de lá pra Belo Horizonte. Quando pedi informações no único bar aberto naquele dia me informaram que o dono de uma pousada fazia o serviço. Mas o carro dele não estava ali. A outra indicação foi o seu Geraldo, que me cobrou 200 reais para me levar até a cidade. Por sorte consegui uma carona. Portanto, planeje e programe-se.

A melhor fonte de informação sobre a travessia é o guia que o ICMBio colocou no ar em 2015 e está disponível aqui. Também existem boas trilhas marcadas no Wikiloc. Sugiro que salve pelo menos a Oficial ou a feita pelo pessoal do Trilhando!. Ah sim: a trilha é gratuita, mas é preciso se cadastrar nesse site pelo menos três dias antes do seu início. Vá que vale a pena. Não fique atrasando essa caminhada assim como eu.

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