O confortável avião da Alaska Air levanta voo no aeroporto de San Francisco rumo à San Diego. Pela janela a névoa que parece sempre cobrir a cidade vai ficando pra trás e o céu azul se abre. Pela próxima hora eu fico sentado na poltrona 22A remoendo toda a informação que guardei na memória sobre a Pacific Crest Trail. Tento também me conectar com os diversos sentimentos, alguns antagônicos, que estou sentindo.
Me sinto um privilegiado por estar aqui. Para muitos é impossível largar o trabalho, a família, o dia-a-dia e passar cinco meses longe de suas obrigações. Ao mesmo tempo me culpo por deixar de lado essas coisas. Estou feliz por saber que irei começar em menos de 48 horas a trilha que venho planejando há meses. Fico triste ao pensar que pelos próximos 150 dias meus contatos com as pessoas que mais amo serão esparsos e virtuais. Estou ansioso por começar e apreensivo pelo que está por vir. Me sinto mais preparado que nunca (muito preparado que durante a Appalachian Trail, em 2017) mas incerto se irei conseguir completar os 4200 km que me esperam.
Saí de San Francisco logo pela manhã. Acordei antes das seis naquela que provavelmente será a cama mais confortável em que irei dormir pelos próximos meses. Havia passado os últimos cinco dias na casa de um amigo e meu tempo na cidade não poderia ter sido melhor. Neste tempo pude andar 130 km pelas ruas e ladeiras da cidade – um número considerável numa cidade pequena em extensão com SF. Pude voltar à alguns pontos que havia visitado na primeira vez que estive ali, há mais de uma década, e pude conhecer outros enquanto preparava minha mochila, meu corpo e minha mente pra o que está por vir.
O tempo na cidade também serviu para fazer novos amigos, experimentar novos sabores e começar a colocar em prática um antigo plano: uma música. Bruno, meu anfitrião, é o cara por trás do ótimo selo Fleeting. Antes da Appalachian Trail falávamos semanalmente, planejando um projeto musical sobre a trilha. O disco não saiu, mas deixamos o rascunho de uma música que começamos a gravar. Precisaríamos de mais algumas horas para deixá-la, mas o que temos é um primeiro passo. E tudo começa com um primeiro passo…
Na minha chegada a San Diego serei recebido por Scout e Frodo, um casal de voluntários e Trail Angels que são verdadeiras lendas na PCT. Há mais de quinze anos eles recebem caminhantes durante a temporada de trilha. Buscam no aeroporto, dão um lugar pra ficar em seu jardim, servem café da manhã e levam para o início da trilha, a mais de uma hora de viagem da cidade. 2020 será o último ano que o casal irá fazer o serviço, que ano passado ajudou 1100 caminhantes. Depois disso Scout e Frodo irão dedicar o tempo livre ao neto recém-chegado – e centenas de pessoas não terão a oportunidade que tive.
Como estrangeiro o casal me deixa ficar até 3 noites em sua casa (americanos podem dicas apenas uma). Irei usar os dias de hoje e amanhã para revisar, pela última vez, o que levo na mochila, dispensando o que achar excessivo. Tive o privilégio de ganhar duas promoções que me ajudaram bastante: o Badger Sponsorship, do site The Trek, que me proporcionou diversos equipamentos (mochila, saco de dormir, isolante térmico, jaqueta, filtro) e o Caveman Dirtbag Sponsorship, da Joe Chocolate Co, que me deu 8 caixas de suprimentos que serão enviadas durante a trilha, além de roupas e um valor em dinheiro, que usei para comprar o que ficou faltando. Isso, somado ao projeto de documentário e redes sociais, fez que minha mochila fique mais inchada que o normal.
Tudo pode acontecer durante nas próximas semanas, mas meu objetivo inicial é ter posts diários no blog e Instagram, quinzenais no YouTube e realizar entrevistas para um documentário sobre pessoas de terceira idade na trilha. Gravo também durante a travessia meu podcast pessoal e seleciono uma música por dia para um playlist no Spotify. Também vou escrever periodicamente para o jornal O Eco, e o primeiro texto já está online. Serão algumas horas diárias dedicadas a estes projetos. Espero ter tempo para realizar tudo o que planejei.
Mas por agora meu tempo está acabando. O comandante já avisa que estamos em procedimento de descida. “Verifiquem a trava da mesa à sua frente”, diz a atendente. O sinal de apertar os cintos se ascende. Sinto a pressão nos ouvidos, o aeronave perdendo altitude e pela janela vejo a asa cortando as espessas nuvens que cobrem San Diego. A cidade está sob mim. Em 48 horas estarei na fronteira com o México e sob o solado do meu tênis apenas terra, pedras, neve e uma longa distância a percorrer até o Canadá. PCT 2019 está começando.
A trilha da trilha: Led Zeppelin – Going to California
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