A trilha da trilha: Luna – California (All the Way)
Eu não assisto muito pouco TV, mas um tipo de programa que adoro, e se deixar assisto por horas, é daqueles onde caçadores de tesouros modernos saem à procura de objetos para serem vendidos em antiquários. Um carro de 1940 que só foram fabricados mil unidades parado em uma garagem de um fazenda, a placa de um posto de gasolina que pode ser vendida por 2000 dólares, um bule feito na China na dinastia Ming jogado em uma caixa debaixo de um piano, o single raro do Elvis que todo mundo quer e ninguém tem. Aqueles arqueólogos conseguem isso tudo barganhando com velhinhos rabugentos em algum lugar perdido no tempo nos Estados Unidos. Acho fascinante: como aquilo pode ter ficado ali tanto tempo e ninguém ter notado? Como a história da primeira gravação do Velvet Underground, a caixa de revistinhas com a número 1 do Homem-Aranha, o autógrafo perdido do ídolo do esporte. Pedaços da cultura pop jogados em um porão.
O Mike’s Place, onde fiquei ontem à noite, poderia estar muito bem nesses programas. Tinha mil discos de vinil na prateleira que ninguém tocava a anos, uma dúzia de toca discos, outro tanto de tapes, amplificadores e caixas de som. Brinquedos antigos nas caixas, um piano, um equipamento chamado Baldwin Tempo-matic que não sei para o que serve e um Cadillac dos anos 70. Sem contar as dezenas de panelas de ferro enferrujando, os equipamentos agrícolas antigos, tranqueiras de tudo quanto é jeito, tudo jogado em uma propriedade longe de tudo: Warner’s Spring, de onde vim, está a 28 km ao sul e a próxima estrada – e próximo ponto de água – 40 km ao norte. Energia elétrica é por gerador, mas tem um forno a lenha onde fazem pizza regularmente para os caminhantes. Não tem sinal de celular e o vento sopra sempre forte e frio – o que faz com que os caminhantes, cerca de 25 essa noite, se amontoem por entre as tralhas.
Cheguei ali por volta de uma da tarde, sem saber se ainda estaria aberto – algumas pessoas diziam que a última semana que aceitariam os caminhantes era a última. Mas uma placa na estrada dizia o contrário. Cheguei no lugar e só encontrei dois caminhantes que tinha resolvido não sair pra caminhar por causa do mau tempo. Me mostraram o lugar – a garagem, a tenda que serve de cozinha e ainda tinha frango assado e torta da noite anterior, o banheiro no meio do mato. O responsável pelo lugar não estava, mas deve voltar mais tarde pra fazer o jantar.
Me adaptei, peguei um refrigerante na caixa de isopor, explorei um pouco mais o lugar e depois de algum tempo o resto do pessoal foi chegando: Tyler e Sydney, Ed e Austin, gente que tinha começado antes de nós, e cada vez mais, todos sem querer encarar a ventania e o frio.
Quinze pessoas dividiam o pequeno quarto no fundo da garagem quando Austin chega com seu Tyvex, um tipo de papel impermeável e durável usado para proteger a barraca do solo, e abre no chão do lugar. No verso ele havia desenhado o mapa de uma continente imaginário. “Ok pessoal, essa é a ocasião ideal pra gente jogar Dungeons and Dragons”. E as próximas horas foram em meio a ogros, fadas, sapos cantores e duendes com mandíbulas de aço.
O jogo só foi interrompido quando Steve, o cuidador do lugar, chegou convocando voluntários para ajudar na cozinha. Entretido com o jogo não fui, mas passados alguns minutos que era lá que deveria estar. Quando cheguei quatro pessoas tentavam sem sucesso fritar salchichas e tortillas em uma churrasqueira a gás. Vendo o fracasso eminente e frustração de 25 caminhantes famintos, pulei na linha de frente, pedi pra três deles saírem e fiquei ali fazendo uma centena de cachorros-quentes mexicanos: tortilla, salsicha, queijo e jalapeños.
Amanhã enfrento o tempo e o frio para chegar ao, dizem, melhor hamburger da trilha. Por hoje tenho por companhia umas latas de óleo dos anos 60, um Cadillac, ferramentas enferrujadas e 24 outros caminhantes que também estão dormindo de barriga cheia. Me sinto feliz como em um programa de tv. A primeira semana de PCT não poderia terminar melhor.
Leave a Reply