Dia 58, 11/06: Blackrock Hut (882.6) a Smith Roach Gap (902.8)
Distância do dia: 20.2 milhas | 32,5 km
Distância total: 907.2 milhas | 1459,99 km
Tem coisas que acontecem na Trilha que eu só acredito porque estão acontecendo comigo. O famoso ‘se contar ninguém acredita’.
Eu tinha planejado andar hoje um pouco menos que ontem. Essa exigência de acampar perto dos huts, sem poder acampar em qualquer lugar, me fez planejar andar 23 milhas hoje, 24 amanhã e 28 milhas depois, pra sair do parque e chegar no trevo pra Front Royal, a próxima cidade. Mas as coisas não saíram como planejado.
A trilha hoje foi um pouco mais difícil. Mais subidas, mais descidas, mais gente. Mas ainda assim bem mais fácil que os trechos anteriores. Como tinha dito ontem, existem vários campings no Shenandoah. Campings pagos, e por isso com uma estrutura incrível. Banheiros, chuveiros, lavanderia, lojas. No final da manhã cruzei o primeiro deles. Mesmo quem não está acampado pode usar a estrutura. Aproveitei pra dar uma passada na loja de conveniência e comprar comida pros próximos dois dias: alguém tinha me dito que os preços eram bons, então saí de Waynesboro carregando quase nada. A minha comida já tinha acabado… O preço, afinal, era quase 50% mais caro que na cidade. Paciência. Comprei também uma cerveja pra celebrar a passagem da marca de 900 milhas. Eu merecia (e não, não atrapalha o remédio que tô tomando. A bula diz “atenção com bebidas alcoólicas”, e não “não beba”).
No camping uma verdadeira manada de thru hikers ia chegando. Uns vinte. O hut, pelo visto, ia estar cheio de novo. Acabei meu café e saí. Logo depois cruzo a primeira das três cobras que passei pela manhã: duas cascavéis e uma ringneck, preta com colar amarelo. Pura sorte: notívaga, é difícil de ser vista durante o dia.
Passei as 900 milhas no meio da tarde. Ia passando batido. Comprimentei outra hiker que estava parada no meio da trilha, ia andando e ela só apontou a marca no chão com a cabeça. “Acho que está na hora de abrir a cerveja que estou carregando”, ela disse. “Vou guardar a minha pro jantar”, respondi.
A trilha dentro do parque de Shenandoah, é bom entender, vai o tempo todo cruzando uma estrada, a Skydrive. A cada dia de caminhada cruzo a estrada uma meia dúzia de vezes. Cruza a estrada, sobe, desce, cruza a estrada e assim vai. Quando desci a montanha pra cruzar a estrada pela última vez do dia um senhor estava estacionando a Silverado. “Você é thru-hiker? Quer uma bebida gelada?”
Minha água já tinha acabado, os dias estão quentes, eu ainda tinha mais umas duas milhas morro acima até chegar onde pretendia dormir (se não estivesse lotado). Mesmo sem essas condições aceitaria o Gatorade. Com elas era irrecusável. Abro a garrafa e ele completa: “olha, tenho umas casas num resort 5 estrelas aqui perto. Vou levar 8 hikers pra um trail magic hoje. Jantar, café da manhã, piscina, banheira. Você é o primeiro. Se quiser ir é só colocar a mochila na caçamba. A única coisa que peço é que ouça a minha história. A propósito meu nome é Max Factor. Eu fiz a trilha em 2010”.
Joguei a mochila na caçamba e ficamos lá esperando mais gente. Foram aparecendo aos poucos. Primeiro o 77, depois o Little Cards, e mais e mais. Max ia usando a mesma tática: oferecia a bebida, depois fazia a oferta. Já éramos uns 15, e praqueles que chegaram por último ele combinou de ir pegar amanhã, 20 milhas a norte na trilha.
Trail Magic num nível nunca visto. Ninja Jedi Mega Blaster. Nove hikers. Seis ficaram em uma das casas. Eu e mais dois em outra. Camas gigantes, hidromassagem no quarto, banho quente, geladeira cheia. Às sete Max chama pro jantar: pernil! Batatas assadas! Cenouras! Saladas! Manteiga da Nova Zelândia! Tudo inacreditável. “Acho que bati minha cabeça na montanha e estou delirando”, comentou um dos hikers.
Max contou sua história no jantar. Ele perdeu um filho em 2009. Para se recuperar resolveu fazer a trilha em 2010. Logo nos primeiros dias conheceu um cara chamado Gabe. Os dois andaram juntos por um bom tempo. Gabe é da Flórida. Iria se casar quando a noiva teve câncer e faleceu. Por causa da perda teve problemas com drogas e álcool, foi preso e resolveu fazer a trilha pra se recuperar. Max Factor tem esse nome de trilha porque Max era o nome do filho e ele era a razão, o motivo, o fator que o levou a fazer a trilha. Daí o nome, Max Factor.
As perdas fizeram os amigos ficarem ainda mais próximos, até que Gabe desistiu. Não tinha mais dinheiro pra continuar. Max ajudou o amigo a completar. Algum tempo depois Gabe se casou e colocou o nome da primeira filha em homenagem a Max. “Ele me chama de pai, eu o chamo de filho. E é por isso que faço esse trail magic: pra celebrar as amizades que são feitas na trilha, e pra manter a memória do meu filho viva”.
Pós-jantar, Max continuou com sua surpresas. Botou todo mundo de volta na caminhonete e levou pro clube do resort. Sauna, piscina… “O clube fecha às dez, mas quando quiserem voltar só me ligar que busco vocês”.
77 comentou: “se te falassem hoje de manhã que você iria terminar o dia na beira de uma piscina você não iria acreditar, não é?”. 77, meu caro, eu estou aqui agora e ainda não acredito…
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