A trilha da trilha: Ramones – California Sun
Miss Margareth estava feliz em sua festa de 65 anos. A família toda estava presente. Todos, menos Henry, seu marido. Eles foram casados por 40 anos, mas ano passado Henry sofrera um enfarte na fila de embutidos do supermercado local. Mas a festa estava bonita, armada no quintal da casa que viveu boa parte da vida. Ali estava David, o filho mais velho, que estava melhor depois de sofrer depressão severa após voltar da guerra. Estava em tratamento desde então e apesar das brigas frequentes com a mãe por causa da maconha (“é legalizado! Tão legalizado quanto o seu brandy, mãe”, ele dizia) não causava mais tantos problemas como antigamente. A filha Laura também estava ali com as três filhas e o caçula Jason. Era difícil ter todos reunidos desde que Laura se separou de um relacionamento abusivo, há três anos.
Miss Margareth estava feliz curtindo aquele momento, até Jason começar a brincar com Molly, a cadela. Correndo de um lado pra outro, sem ouvir o que a avó dizia, Jason esbarrou na mesa e jogou no chão o bolo do aniversário. A vela caiu sobre o forro, e o fogo queimou o fio que segurava os balões amarelo, branco e preto com as inscrições “happy 65”, que subiram no ar. Num impulso, David ainda tentou ajudar: pegou a taça de brandy da mão da mãe e jogo no fogo, tentando apagá-lo. A ação saiu pela culatra: o álcool fez a chama se alastrar e a última coisa que Miss Margareth fez foi pegar uma das gêmeas pelo braço, gritar pelo nome dos outros netos e sair pela portinhola dos fundos.
Do outro lado da rua, enquanto os bombeiros ainda chegavam, Miss Margareth viu sua festa de 65 anos se transformar num pesadelo. A casa, recém-vendida para pagar as despesas do hospital do marido, ardia em brasa, assim como os objetos e memórias de uma vida. As únicas coisas que haviam se salvado foram os balões branco, amarelo e preto com as inscrições “happy 65”, que voaram sem rumo no céu de Wrightwood.
A história que acabei de contar é, claro, fictícia. Fiquei andando e imaginando o que teria acontecido para aqueles balões estarem ali, no meio do nada. Claro que era algo mais simples e banal que isso, mas é esse tipo de coisa que que as caminhadas fazem com você: sem nada pra fazer, a não ser caminhar, sua mente vai longe. Que o digam escritores, filósofos e religiosos que usam o caminhar como forma de pensar melhor…
Ainda mais num dia como aquele, longo e sofrido. Foram 25 km morro acima, sem ponto de água, e a sede só foi aliada graças aos galões deixados por um trail angel. Queria chegar à cidade de Wrightwood, mas quando parei no topo da montanha, quase uma da tarde, ainda tinha dúvidas se conseguiria chegar. Ainda faltavam mais alguns quilômetros de descida até a estrada.
Segui caminhando devagar, sem energia, querendo passar a noite ali mesmo. Quando Ed e Tyler me encontraram, me deram um gás de ânimo. Faltavam poucos quilômetros para chegar à estrada quando encontramos com
duas locais que deram a real: a cidade (uma dúzia de casas na beira do asfalto) estava cheia e com sorte a gente conseguiria um lugar.
Sydney, que havia saído mais cedo, conseguiu uma carona pra gente no carro mais bacana do lugar (um Volkswagen Thing 1973 recém-reformado) e depois de fazer compras e encontrar Austin no supermercado legal, optamos pelo único lugar disponível: um hotel caro, mas com duas camas de casal, que nós quatro iremos dividir pela noite.
Os balões que peguei no caminho estão aqui, mas não irão sobreviver a mais um dia de caminhada.
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