O que é?
A Estrada Real seguia a trilha dos bandeirantes. Era usada pelos portugueses para levar as riquezas de Minas Gerais (ouro e diamante) para o Rio de Janeiro e de lá para Europa na época do Brasil Colônia. Em 1999 o Instituto Estrada Real ‘oficializou’ quatro caminhos distintos para turismo: o Caminho dos Diamantes, o Caminho do Sabarabuçu, o Caminho Velho e o Caminho Novo.
Onde fica?
Em Minas Gerais, a maior parte. O Caminho dos Diamantes vai de Diamantina a Ouro Preto. Sabarabuçu sai de Cocais e chega a Glaura. O Caminho Velho sai de Ouro Preto e chega a Paraty. E o Novo de Ouro Preto ao Rio de Janeiro.
Qual distância?
Os caminhos tem contagem distintas e podem ser feitos separadamente ou em conjunto. O Caminho dos Diamantes tem 395km. Sabarabuçu 160km. O Caminho Velho compreende 710km e o Novo outros 515km. No meu caso o projeto é fazer o Caminho dos Diamantes até Cocais, o de Sabarabuçu até Glaura e o daí o Velho até Paraty, num total de 1120 km de caminhada.
Quantos dias?
O Instituto Estrada Real sugere 27 dias para o Diamantes, 11 para o Sabarabuçu, 35 para o Velho e 48 para o Novo. Mas é possível fazer em menos tempo. O projeto é fazer os três trechos em 35 dias (média de 32km por dia).
O relato:
Dia 01 (30/05/2016): Diamantina – São Gonçalo do Rio das Pedras
Distância do Dia: 35,7km
Distância Total: 35,7km
Unhas nos pés: 10
O final de semana foi atípico: aniversário, jantares com amigos, cinema com neta, almoços com familiares. Normalmente são mais tranquilos e intimistas. Apesar disso não havia deixado de lado a ideia de começar a Estrada Real na segunda. Domingo à noite, pós-feriado, com trânsito confuso no centro de BH, tive que ir duas vezes seguidas à rodoviária: primeiro pra deixar visitas que estavam voltando e algumas horas depois para pegar o ônibus para Diamantina. Tivesse o final de semana sido mais tranquilo eu teria saído mais cedo, visitado a cidade com calma, dormido ali e começado pela manhã. Nas circunstâncias atuais saí à meia noite e às 6:00 em ponto estava em frente ao primeiro marco do Caminho dos Diamantes. (Antes tive que ligar pra o Hostel Pico do Itambé e acordar o Marcos às 5:30 para pegar meu passaporte. Com ele vou colhendo carimbos em cada cidade e ao final recebo um certificado. É uma boa forma de ter informações sobre o número de pessoas que fazem o percurso – eu sou o 1132. Mas por outro lado restringe o turista em passar obrigatoriamente por algumas pousadas e restaurantes. Quem disse que o objetivo do percurso é estritamente cultural hein?)
O início foi frustrante. A estrada de Diamantina à Milho Verde está sendo asfaltada e a ideia de caminhar 30 km por terra foi por asfalto à baixo. Pelos 10 km já estão finalizados (com acostamento seguro para caminhantes e ciclistas, é bom dizer) e outros 10km são divididos com máquinas, tratores e operários. A obra deixou confusa também a sinalização (já não muito inteligente) da Estrada Real, me fazendo gastar tempo em decidir qual, afinal, era a estrada correta. Só o trecho final do primeiro dia, já chegando à Vau, foi como esperado. E aí a natureza reina, com a presença de aves, animais silvestre e formações rochosas lindas, apesar de muitas outras já estarem no chão, para a chegada do progresso.
Sozinho, sem conhecer a região, sem sinal de celular, não é simples explorar as trilhas paralelas. Passei batido pela Gruta do Salitre e só percebi quando estava perto da saída. Mas felizmente ainda deu pra voltar e ver um pouco do lugar. Uma cachoeira ficou pra trás e o caminho dos escravos também. E tem mais: quando a cidade mais próxima está a 35 km de distância como hoje a vontade é só chegar. Não me arrependo de ter passado pelas atrações turísticas mais conhecidas: agora pelo menos tenho mais uma desculpa a voltar. Além disso calculei mal a minha água – na verdade bebi muito dela no ônibus e não achei nada aberto em Diamantina – e me contive nos primeiros 25 km com o quem tinha. Só em Vau entrei em um bar e tomei um litro de água e outro de Coca-Cola. E fiz ali uma parada de uns 30 minutos, a única do dia, pra ficar conversando com o Luís, o dono do lugar. Conversando é força de expressão: ele juntava um caso no outro e ia dos 35 anos que morou em Belo Horizonte ao tempo em que trabalhou como topógrafo e saiu andando 900km no Mato Grosso, marcando pontos de instalação de redes de transmissão. E a partir daí já ia pra quando morou no Iraque e viu de perto a Torre de Babel. Dizia que um dinar, a moeda local, vale 3 dólares, mas na verdade um dólar vale 1100 dinars. Luís contava que nasceu no Espírito Santo e que quando trabalhava pro ex-governador Newton Cardoso, certa vez dirigia por uma estrada e viu um caminhão jogar de propósito a traseira só pra matar um andarinho (“você fica esperto. Sei que você tem cuidado, mas tem muita gente mau no mundo que não tem dó de andarinhos” – e reforçava o som nasalado do nh que não existe na palavra). Dizia também que se mudou pra Vau porque cansou de cidade, “mas o que eu quero mesmo é comprar uma D20 cabine dupla e sair pescando mundo a fora. Daí se eu não tiver mais dinheiro pra gasolina eu vendo uns peixes e tá tudo beleza”. Antes de despedir me mostrou um caminho opcional, que eu poderia subir e economizar 3 km no trecho até São Gonçalo.
Fui conferir. Era uma subida muito braba. Eu até queria chegar rápido, mas por ali eu não iria passar pelo Rio Jequitinhonha. Preferi ir pela estrada original e poder ver a beleza que é o Jequi na divisa de Diamantina e Serro. Os recortes nas pedras, a cor da água, o cenário de fundo, é tudo lindo. E ali acima a ponte, quase caindo. Pelo visto vai ser derrubada em breve.
Cheguei em São Gonçalo dos Rios das Pedras às duas da tarde, depois de sete horas e meia andando (já descontado aí o tempo do bate-papo com o Luís) e quase trinta e seis quilômetros percorridos. Na Pousada dos 5 Amigos o papo foi com o João, ex-garimpeiro, artesão e caseiro do lugar. E depois dessas conversas, com o Luís e o João, fica a certeza que o melhor de caminhar é encontrar pessoas como essas.
Dia 02 (31/05/2016) – São Gonçalo do Rio das Pedras ao Serro
Distância do Dia: 41,87 km. Distância Total: 77,57 km. Tombos que levei até chegar na cachoeira: 2.
Existem dois tipos de pessoas (na verdade existem mais, mas não vamos complicar): as que gostam de tomar banho antes de dormir e as que preferem banho ao acordar. Eu sou do segundo time. Só que banho pela manhã e caminhadas não combinam: a água deixa a pele do pé mais fina e a possibilidade de bolhas aumenta. Então fui dormir ontem lá pelas 8 da noite depois de dois banhos quentes (meu requisito número um pra escolha da pousada) e acordei às cinco. Sabia que o dia ia ser pauleira: na planilha do trecho de São Gonçalo ao Serro, o guia do Instituto Estrada Real mostrava que eram 31 km pelo asfalto. Mas contava também da existência de uma trilha entre Milho Verde e Três Barras: “contudo, o local ainda não apresenta infraestrutura turística”. Era o que eu precisava. E conversando com o João, caseiro da pousada, ele me contou também de uma trilha de São Gonçalo a Milho Verde, mais longa que o trecho oficial, que passava por cima da Serra. Pronto. Pelo menos metade do percurso seria do jeito que eu queria: longe do asfalto e das máquinas, no meio do mato. Iria ficar mais cansado pelos quilômetros extras mas o fator “diversão” também seria maior.
Tinha combinado com o João que poderia dispensar a moça do café, que chega normalmente às 7h. Nesse horário eu já queria estar longe. Se ele deixasse uma garrafa térmica na noite anterior com um café coado pra mim já estava bom. Como certeza ainda estaria quente pela manhã. Na manhã seguinte, além do café, ele deixou na mesa pão, bolo, bananas, maçãs e um bilhete: “se quiser pode levar os pães e as frutas pra comer na estrada. Boa caminhada”. Como não amar essa hospitalidade mineira?
Passei na entrada da igreja do Rosário e ao invés de seguir direto, como a planilha indicava, quebrei à direita e subi. A estrada parecia recém-aberta e durante todo o percurso não passou nem uma pessoa por mim. Só quando cheguei ao Beco dos Prazeres – aquele que vai de Milho Verde à Cachoeira do Piolho e ao Bordados da Barra (de novo, como não amar?) – encontrei alguém.
Milho Verde é aquele charme delirante. As casas, o entorno, tudo continua encantador. Mas não demorei: carimbei o passaporte na Pousada Morais, fiz a foto clássica na Igreja Do Rosário e peguei a estrada. Quer dizer, trilha. Na pousada Morais o Rodrigo havia me dito que não era aconselhável pegar sozinho a trilha até Três Barras. Mas com o celular carregado, um carregador extra e os mapas salvos em off-line no Google Maps tomei coragem e entrei mato a dentro. As formações rochosas, a vegetação de serrado, as fontes de água, a areia incrivelmente branca em alguns momentos, tudo deixa o cenário em uma beleza única. Mas apesar das placas proibindo motos e bicicletas, várias marcas de pneus estão estampadas na terra. Trilhas são abertas sem nenhum critério, destruindo a flora e favorecendo a erosão. Aliás, a marca da presença humana – e da destruição que ela provoca – é uma constante em todos os trechos. Na estrada, de guimbas de cigarro à privadas, já deu pra ver de tudo. Nas trilhas, plástico, latas e garrafas também não são raros de achar.
Com o Maps, saí seguindo a trilha mais nítida que ia até a estrada pra Capivari. No caminho, umas placas indicavam Canelal. Só quando cheguei à cachoeira me dei conta do que era. Como ainda não era hora do almoço – era bem antes: quando cheguei pensei ser por volta de 11h, mas vi que ainda não eram 10h – e eu com tempo, caí na água gelada e fiquei um tempo ali curtindo. De tão relaxado que fiquei, quando voltei pra trilha não só me perdi como levei dois tombos: ao invés de usar os bastões, ficava com o telefone na mão tentando achar de novo a trilha.
Ainda tentei pegar uma outra trilha até Três Pontas, mas como não via caminho depois de um determinado ponto segui pela estrada de terra até a rodovia. A partir daí foi só sofrimento: uma hora até Três Barras, pausa para foto e Gatorade num bar de beira de estrada e depois mais quatro horas e meia de asfalto, sol quente, falta de sombra e descidas intermináveis, que judiavam dos joelhos e dedos do pé. Só não foi pior por causa de uma subida ao Serro do Cruzeiro e por ter chegado ao Serro com tempo pra visitar a igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde a simpática Artemira me deu todas as informações necessárias. Aliás, é bom saber que no Serro tem rodízio de igrejas: não poderia visitar as outras nem se quisesse. Abre uma por dia de semana e pronto.
Com os preços das pousadas do centro mais no alto que a Igreja de Santa Rita, dei uma passada no escritório de turismo pra tentar achar algo mais barato. A solução não poderia ter sido mais indicada: a Pousada Dona Tuca fica na saída pra Alvorada, meu destino do dia seguinte. Olugar é uma fazenda centenária, linda e o silêncio só é quebrado pela voz da Duda, a neta da dona. Aos 8 anos ficou de papo comigo, sem acreditar que eu estava viajando a pé (“você não tem carro?”, ela perguntava), enquanto eu devorava o maior x-tudo que encontrei nos últimos anos.
Dia 03 (01/06/2016) – Serro à Tapera
Distância do Dia: 52,88 km. Distância Total: 130,45 km. Vezes que eu parei pra fotografar essa serra: 16.
Tenho dormido mal. Apesar do cansaço da caminhada – ou por causa dele – o sono custa a vir e quando chega vem partido, intercalado com pensamentos e dores nas pernas. Coxa, joelho, panturrilha, canela, calcanhar, dedos e outras partes que meu limitado conhecimento de anatomia não sabe descrever doem constantemente em intensidade diferentes. Não me lembro de ter sido assim quando fiz o Caminho da Fé. Tenho evitado tomar Vitamina I (Ibuprofeno, pra aliviar as dores) mas acho que hoje não vai ter jeito. Pelo menos os joelhos, que são minha maior preocupação, não estão ruins. Graças aos bastões, que tem ajudado bem na subida e descidas, como a longa até chegar no Serro.
Outra coisa é que minha sede noturna aumentou bastante. Já faz um tempo que tenho que dormir com uma garrafa ao lado da cama, pra dar um ou dois goles no meio da noite. Mas agora, apesar de me hidratar bem durante o dia, estou tomando fácil um litro de água entre o deitar e o acordar. E logo antes de sair estou fazendo o que os americanos chamam de ‘camel up’: tomando mais um litro, que nem camelo, pra já ir pra trilha estocado.
O fato é que como o trecho seria pequeno – 18km até Alvorada de Minas – me permiti ficar na cama um pouco mais que o normal e coloquei o despertador para as 6h. Programava tomar o café (e comer uma fatia do famoso queijo do Serro) e sair lá pelas 7 horas, pra chegar na hora do almoço. Mas acordei às 4h com uma sinfonia de galos e o sonho que eu tinha reaberto o boteco do meu pai, transformando o lugar num armazém à moda antiga, só com produtos regionais de qualidade. No sonho eu conversava na porta do bar com minha esposa e uma irmã: o lugar não tinha dado certo, Divinópolis não entendia um conceito daqueles e eu achava que o bairro precisava era mesmo de algo que atendesse à população local…
Fiquei das quatro às seis finalizando o blog e desci pro café. Conversei com a Dona Tuca, a dona da pousada, certamente a mais barata da cidade. Ela me contava de quando se mudou pra fazenda, há 53 anos. Que o pai do falecido marido tinha ali o primeiro açougue da cidade. Falamos dos filhos, da neta Duda, da minha caminhada. Fiquei ali até as sete, intercalando café e queijo, e beliscando outras coisas.
Sabia o que esperar do caminho: um roteiro chato, burocrático, de asfalto, até a cidade de Alvorada de Minas. Dezoito quilômetros de asfalto, sem muita subida? Moleza. Pouco depois das dez eu já tinha chegado.
Achei Alvorada de Minas uma cidade sem personalidade, com construções recentes para os padrões da Estrada Real. Só não passei batido pelo centro porque precisei comprar uma pomada para uma assadura que já começava a me incomodar. Subi até a igreja matriz e ali mesmo, em frente ao altar, enfiei a mão por dentro da calça e apliquei o remédio.
Como era cedo, eu estava disposto (e agora devidamente prevenido de assaduras) resolvi chegar até Itapanhoacanga. O guia dizia que o caminho seria agradável, com sombras, por estrada de terra, com uma chegada triunfal, por fazendas centenárias…. Por que não, né não? Saí antes das onze e fui.
Sol castigando, uma poeira danada, cenário sem graça (fazendas, gado, gramados, eucaliptos… Você já imaginou como era…) e eu indo, querendo chegar pro dia acabar logo. Afinal, mesmo em aventuras existem dias melhores que outros. Já havia entendido que se estivesse no escritório seria daqueles dias que estaria olhando o relógio a cada cinco minutos, querendo apenas ir pra casa. Quando parei pro almoço – duas maçãs que a Dona Tuca tinha me dado – o Wesley chegou de cavalo, puxando conversa, perguntando sobre a caminhada e contando que Alvorada nunca foi parte da Estrada Real. Segundo ele, o roteiro original era onde onde está a MG10, que peguei apenas um trecho. Não sei os fatos históricos, mas na prática faz sentido: além de ser mais nova, ao ir dela pra Itaponhacanga e preciso fazer suas curvas em 90 graus sem lógica.
Cheguei em Ita (pode ser Ita né? Não sei falar o nome dessa cidade. E nem sei se o que escrevi aí acima está certo…) já me arrastando. No primeiro mercadinho comprei duas latas de refrigerante e fui entender se ficaria aí ou seguia viagem.
Quando li o descritivo do trecho até Tapera no guia a primeira vontade foi entrar na primeira pousada e ficar ali. “Durante a travessia, o viajante encontrará inúmeras subidas em terreno de cascalho, porém, combinadas com pequenas curtos trechos retos ou de declive, permanecendo desta forma por 10 km. A partir deste ponto, o trajeto passa a apresentar descidas íngremes com características bastantes técnicas, principalmente durante os primeiros quilômetros”, dia. Mas o relógio já marcava 15h, o trecho era curto (só mais 14km) e a vista lá de cima com o sol se pondo parecia promissora… Comprei mais 3 litros d’água, descansei mais uns minutinhos e subi. E subi. E subi. E subi…
E uma hora e meia depois ainda não tinha andado 4km (normalmente dá pra fazer o dobro disso). E a cada metro mais alto o visual ficava mais bonito. E a terra era fofa, com muitas pedras, e eu escolhendo onde pisar e aquela serra ali do lado, que pedia mais uma foto… E o sol foi se pondo e a beleza não tinha fim. Foto, filme, selfie, e o tempo correndo…
Tinha previsto chegar em Tapera as seis da tarde, dando um folga de meia hora a mais pros tais quatorze quilômetros finais. Escureceu, botei a lanterna de cabeça e andei um bom tempo ainda. Cheguei bem depois das sete da noite, cansado dos cinquenta e poucos quilômetros e doze horas de estrada.
Tapera – o nome de Tapera não é Tapera… É Santo Antônio do Norte. Mas todo mundo conhece o lugar como Tapera… – é um charme. Uma cidade onde a pousada fica dentro de um bar e a janta é servida na cozinha da dona não pode ser ruim. Talvez ela seja a pérola perdida da região. Quero voltar.
Dia 04 (02/06/2016) – Tapera à Conceição do Mato Dentro
Distância do Dia: 36,99 km. Distância Total: 167,44km. Cobras que cruzaram o meu caminho: 2.
A Pousada Samião, em Tapera, é um empreendimento familiar. Dona Maria toca o negócio com os filhos e os netos. A pousada fica ao lado da casa dela, e quando você pede a janta Dona Maria te leva pra cozinha, onde esquenta o almoço no fogão a lenha. A pousada não tem nem meia dúzia de quartos, escondido atrás do armazém da família. De dia vende arame farpado, crédito de celular, detergente. A noite o armazém vira boteco, e aí também tem sinuca, gente jogando truco, cerveja, cachaça, e a melhor coxinha que comi, que a própria Dona Maria faz. O lugar é singular.
Mas Dona Maria só acorda às sete, então pedi pra deixar um café coado pra eu tomar no dia seguinte. Saí às seis da manhã, fotografei Tapera às escuras e não andei 100 metros rumo à Conceição do Mato Dentro quando passa por mim um sujeito empurrando a cegêzinha. “Acabou a gasolina?”, perguntei. “Nada rapaz! Parei a moto ontem ali um minutinho e num é que roubaram a minha chave?” E lá foi o sujeito subindo a ladeira empurrando a danada.
O caminho do dia era tranquilo e não reservaria muitas surpresas. Dez quilômetros de terra até Córregos e depois mais de vinte de asfalto pela MG10 até Conceição. Dia nascendo, sol fazendo um esforço danado pra sair por entre as nuvens, névoa cobrindo o vale abaixo (no dia anterior tinha visto as luzes de Conceição do alto do morro, antes de chegar a Tapera. Agora era tudo nuvem), eu indo na minha toada, tranquilo, foto aqui, vídeo ali até que paro pra beber uma água, boto a mochila no chão e vejo um abridor de garrafa, desses de chaveiro, verde. Pego o troço e na outra ponta, uma chave Honda.
Fico pensando nessas coisas que acontecem nessas caminhadas. Essas coincidências. Qual a probabilidade de eu ter encontrado com o cara empurrando a moto? Tivesse eu saído cinco minutos antes ou depois isso não teria acontecido. E qual a probabilidade de, em um trecho de trinta e cinco quilômetros, eu parar logo ali, onde estava aquela chave meio enterrada na poeira da estrada de terra? Quais os fatores que levam a esses acontecimentos? São puras coincidências? Ou são coincidências significativas, sincronicidade? O que me levou a achar a chave do rapaz e o que isso quer dizer, ora?
Cheguei em Córregos e liguei pra pousada. Adilson, um dos filhos da Dona Maria, atendeu. Contei o caso e disse que deixaria a chave no armazém do Antônio. Se ele ficasse sabendo quem é o dono, era só pedir pra ir pegar. E na frente da charmosa e mínima igreja do vilarejo, fiquei papeando com dois moradores locais. Claro que todo mundo quer saber da história, de onde estou vindo, até onde vou, quantos dias isso vai levar. E contei da conversa do dia anterior com o Wesley, que tinha me falado que o trajeto demarcado não é o original. E eles concordaram. Ao invés de seguir a MG10, segundo eles, o trecho ia serpenteando a serra, passando por fazendas, em uma estrada “que até passa carro, mas você vai dar muito sorte se encontrar um”. “Azar”, corrigi. Tô fugindo de carros.
A preocupação era se eu saberia o caminho certo, em meio a tantas bifurcações. “Mas não tem erro: chega na escola, vira à direita, depois é só pra esquerda, contornando a serra. Tem que passar pelo córrego: se você andar meia hora e não cruzar a ponte tá no lugar errado”.
Como a gente dizia lá em Divinópolis nos meus tempos de moleque, mole pro Vasco. Despedi, agradeci, passei pelos moleques na hora do recreio e meia hora depois, córrego. Aí foi só seguir, conferindo vez ou outra no Google Maps. Não vi ninguém – a não ser as duas cobras – até encontrar o Mauro Renato na porta de uma das casas. Conferi com ele se o caminho estava mesmo certo e a resposta foi um “certo cê tá, mas se tivesse chegado 15 minutos antes teria pegado o ônibus. Alá ele indo!”. E além do Mauro e das cobras meu único encontro nos quinze quilômetros do percurso foi com um rebanho de vacas que viu em mim seu pastor e me seguiu por uns dez minutos… Ao final a estrada chegou ao asfalto, na estrada que dá entrada à cachoeira do Tabuleiro, que vai ficar pra outra vez.
Quando cheguei a Conceição do Mato Dentro o lugar parecia um canteiro de obras. A pé já era difícil andar, imagina quem estava de carro… Ruas fechadas, prédios em obra, intransitável todo o trajeto da Prefeitura à Igreja Matriz. Achei com esforço a Secretaria de Turismo e a Maria Anete, a atendente, foi de uma simpatia sem fim. Me levou pra tomar café nos fundos da casa, perguntou sobre o trajeto e me disse pra ficar no Hotel Umbelina, na região central. Uma pensão simples até o último grau, com cenário é personagens de filme.
Existe uma grande dúvida aqui em Minas sobre qual o melhor pastel de angu. A briga é entre Itabirito e Conceição do Mato Dentro. Pra esclarecer fui até a um bar moderninho em frente ao “hotel”, o Fattoria. Queria algo mais tradicional – o Arataka do Zeca seria ótimo – mas não encontrei mais nada aberto naquela noite. Meia dúzia de pastéis, duas cervejas e a certeza que vou ter que vai ser difícil Itabirito bater essa combinação.
Dia 05 (03/06/2016) – Conceição do Mato Dentro a Morro do Pilar
Distância do Dia: 29,69 km. Distância Total: 197,13 km. Unhas nos pés: 9,5.
Exceto pelo trecho inicial, uns 3 quilômetros de subida, no asfalto, sem acostamento, o dia seria tranquilo. Nada muito insano em distância – menos de 30 km – e nem altimetria. Era sair de Conceição, penar um pouco no asfalto e pegar uma estrada de terra quase sem movimento (quem vai de uma cidade a outra de carro prefere pegar as MGs 010 e 232) e que corta trechos de mata fechada.
Sair de Conceição do Mato Dentro foi um alívio. Mais do que os prédios e igrejas centenárias, mais que o pastel de angu, mais do que as reformas que transformaram a cidade num canteiro de obras, o que chama realmente a atenção na cidade são os inúmeros carros, ônibus, caminhões e caminhonetes identificado com letras e números das mineradoras. É triste saber que aqui do lado – pior, que aqui em volta – estão explodindo, escavando, revirando, destruindo tudo. Se bobear já já transformam a cachoeira do Tabuleiro em minério.
Comi um pão de queijo na padaria em frente à pousada e pouco depois das 6h já estava na estrada. Assim como nos dias anteriores o clima era quente, mas nuvens cobriam o céu. Logo depois de entrar na estrada de terra cruzo o caminho com um senhor carregando um guarda-chuva. “Bom dia! Acha que hoje chove?” “Uai, tô ino lá pra roça e já tá chuveno in Belorizonte, São Paulo, Ridijanero… essa chuva deve de chegá aqui hoje ainda. E ficá lá na roça na chuva num é bão não…” E fomos, cada um pro seu lado, pensando se chove ou não, tiro a capa de chuva ou deixo onde está, esse tipo de dúvida sem importância que acompanha quem está na estrada.
Ainda não tinha dado 7:30 quando vi o Dedé subindo a estrada, tocando seus gados: uma vaca, três bezerros. Saí de lado pra deixar ele passar, mas ele já foi abrindo a cerca e tocando os bichos pra dentro. “Hora de botar a criação pra pastar?”, perguntei. “É…”, ele disse. “E que horas você busca de volta?” E sem responder minha pergunta, parecendo que precisava conversar e se abrir com alguém, ele começou a contar o caso da vaca que perdeu.
Na segunda, quase no mesmo horário que saí de Diamantina pra minha caminhada, Dedé veio de Conceição, onde mora, pra tirar leite, buscar as vacas pra pastar e dar comida pros três cachorros e dois gatos que moram na casinha que tá construindo. De noite as vacas ficam ali, de dia pastam no terreno do primo. Quando chegou viu uma das vacas no chão. “Até pensei que fosse onça, que aqui tem demais”. Não era. A vaca tinha sido morta com um corte no pescoço. Na anca da vaca faltavam dois pedaços. Alguém tinha entrado no terreno à noite só pra roubar os contra-filés. A vaca estava prenha, com “um bezerrinho desse tamaninho dentro da barriga”. Dedé procurou a polícia, mas ninguém teve interesse. “Foi a secretária que veio me fazer pergunta. Num foi o delegado não. Falou que era pra eu investigar. Eu não, uai! Eu acho que eu sei quem foi. Agora Deus me perdoe, eu tenho mulher, tenho filho pequeno, mas se eu pego o cara que faz uma coisa dessas eu mato”. A única vaca adulta que ele tem agora é que dá o leite pro seu filho e seu sobrinho. “E eu, se tivesse mais vaca, não ia vender o leite não. Ia doar tudo pro hospital”.
Descemos juntos os poucos metros entre o pasto e a casa. Quando vi o carro dele, comentei que tinha visto ele passar mais cedo. “Te vi também. Nó!, falei pra minha mulher. Se eu não tivesse que levar o leite eu queria era vir todo dia correndo de Conceição até aqui. Isso é bão demais!”.
Não deu uma hora desse encontro e eu parei pra tomar água quando chega o seu Zé montado num burro. “Bom dia!” “Bom dia… Uai, eu acho que eu já te vi ocê por aqui”, ele comentou. Seu Zé não foi o primeiro. Antes deles umas três pessoas juraram que esta não é a primeira vez que faço a Estrada. Em Tapera um sujeito veio conversar comigo como se fossemos conhecidos. Jurava que eu já tinha passado ali antes.
José Sebastião do Nascimento, o seu Zé, tem 75 anos. Mora logo ali, na divisa de Conceição com Pilar, e tava indo no comércio comprar uns mantimentos, como disse. “Mas o senhor tá forte pra 75 anos!” “Ih, meu filho, tô nada. Minha língua ainda não tá boa. Tive um negócio aí chamado PCC. Me levaram pra Conceição e depois pra Diamantina. Fiquei um mês sem falar nada, nadinha. O cérebro comanda mas a língua não responde, sabe?” Perguntei se ele já tinha encontrado com muita gente fazendo a Estrada. “Ih, é gente demais. O povo vem de jipe, vem de bicicleta, vem a pé… Dia desses tinha uma mulher fazendo a pé, vê se pode. Eu não tenho coragem de fazer um trem desses não”. Tem medo de que, seu Zé?, perguntei. “Tá doido, menino? Nesse comunismo todo que anda o Brasil?” Gargalhei. Não era minha função explicar que não era bem isso. Quando despedi, ele perguntou meu nome. Jefferson, eu disse. “Jefson. Esse nome aí eu tenho escutado muito na televisão…”
Na divisa de Conceição e Morro do Pilar, onde seu Zé mora, passa o rio Santo Antônio. Perto da ponte tem uma formação rochosa linda, com uma prainha em baixo, emoldurando o rio. E logo ali perto, do lado da estrada, uma construção antiga, encoberta pela mata, me chamou atenção. De pedra encaixada, deve ter fácil uns 200 anos, se não mais. E tá ali perdido, pura ruína.
Cheguei em Morro do Pilar logo depois de uma da tarde, depois de quase 30 km e 6,5 horas de caminhada. E agora, até amanhã, só descanso. O trecho daqui até Itambé, dizem, é o mais difícil da viagem.
Dia 06 (04/06/2016) – Morro do Pilar a Itambé do Mato Dentro
Distância do Dia: 38,36 km. Distância Total: 234,49 km. Objetos que perdi: 1.
Quando falei ontem com o Paulo Henrique que iria sair antes das 6 ele insistiu para que eu ficasse pelo menos até seis e quinze, porque ele fazia questão de preparar o café da manhã. O Paulo é o dono da Pousada Vovô Juca, em Morro do Pilar. Além de ter o chuveiro mais quente da viagem até agora (daqueles que você tem que deixar no modo verão, senão não aguenta), tem uma localização excelente: ao lado da igreja.
Quando cheguei ele não estava. Subi as escadas (sempre um suplício) e quando perguntei o preço da diária quase caí pra trás. A atendente me disse que não aceitava cartão, mas que assim que o dono chegasse ele daria um jeito, eu não precisaria preocupar. Wi-Fi tem, cama confortável também, além do chuveiro quente que ela já havia dito, então pra mim tá ok. Antes de entrar pro quarto perguntei de novo o preço, vai que eu tinha escutado errado. “35 reais”, ela respondeu.
Eu estava com um problemão. Em Conceição não tinha agência do meu banco. Em Morro também não. E nem nas próximas 3 ou 4 cidades. Eu tinha um dinheirinho comigo, mas precisava sacar mais ou pagar as próximas despesas com cartão. Só que em muitas dessas localidades, lugar que aceita cartão é raro. Meu plano A era convencer o Paulo a me fazer uma jogada: eu pagava a mais, ele descontava as taxas e me devolvia o dinheiro. O plano B era transferir da minha conta pra dele. Quando o encontrei pela primeira vez, Paulo Henrique já veio me contando a história do Morro, as cachoeiras, as festas populares – incluindo o Tutu da Madrugada, ideia que iria apropriar fácil se tivesse um bar. Quando comentei a história do dinheiro, me chamou pra ir até uma loja de material de construção e contou pro balconista meu drama. “O senhor precisa de quanto?”. Mais fácil que imaginava. Coloquei cem reais no meu bolso, paguei a pousada e deixei mais 5 reais de taxa.
Na volta, Paulo Henrique me contou sua história. Nasceu no Morro do Pilar, mas morou em BH por nove anos. Foi tentar medicina, “como se diz, por incentivo do meu pai”. Durante cinco anos passou na primeira etapa e bombou na segunda. Encheu o saco, voltou pra sua terra natal e montou um comércio. No início dos anos 2000, com a mineração em alta na região, montou um supermercado e alugou cinco casas, que usava como pousadas. Até que teve um infarto. Num domingo, começou a sentir os sintomas. O médico da cidade mandou ele pra casa: “isso é stress”, ele disse. Até que um amigo da época de estudante, agora médico residente, “resolveu, do nada, vir pra cá num domingo. Ele botou um short e uma camiseta e veio. Quando me viu mandou direto pro hospital”. Depois disso Paulo fechou as casas, os supermercados e deixou só a pousada do Vovô Juca. Mas tá construindo outra, grande, na entrada da cidade. O pagamento em cartão na loja de materiais é pra cobrir o pendura dele.
No café da manhã, com aquela mesa com uma incrível variedade de biscoitos e pães, ele me conta que ele e a esposa que fazem tudo. Não vendem pra fora: é só pra pousada. “E como você aprendeu?”, perguntei. Na época do supermercado Paulo Henrique tinha um padeiro que faltava todo dia posterior a alguma festa. Era ter festa e a cidade ficar sem pão. Inconformado, mandou o sujeito embora, fez um curso básico e começou a pegar dicas com as quitandeiras antigas da cidade: biscoito tal só pode mexer pra um lado, o outro não pode pegar vento, o terceiro tem que mudar um ingrediente… e no café da manhã da Pousada do Vovô Juca cada um é melhor que o outro.
A estrada até Itambé do Mato Dentro é longa (35 km) e tem três subidas extensas, daquelas de 2 ou 3 quilômetros cada. Mas esse não é o principal problema. Durante todo o percurso a terreno é ou pedra (soltas, de todos os tamanhos) ou poeira, que chegava a encobrir o meu tênis por completo quando pisava. Foi numa dessas que perdi o disco de um dos bastões de caminhada. Os dois terrenos deixam a caminhada muito mais complicada. É preciso mais concentração, atenção onde pisar e esforço físico.
No início o caminho sai margeando o rio Peixe, de água escura. Pouco depois dessa parte, olho pro lados e vejo um troço jogado na beira da estrada. Pedaços de pano branco e azul se espalhando por alguns metros. Chego mais perto e dou uma fuçada com o bastão: são roupas de recém-nascido. Um enxoval completo, já sujo da terra. Vou pegando um por um, dando uma sacudida e colocando em uma das minhas sacolas reservas. Pode ter caído do caminhão de mudança, pode ter caído da moto ou alguém pode ter perdido o bebê e jogado o enxoval da criança fora, desgosto. Boto na mochila, com a intenção de doar na igreja em Itambé.
Depois da segunda subida, faltando uns 10 km pra chegar, o que domina a visão é a Serra do Cipó e a Serra do Intendente, majestosas, se esticando até aonde a vista alcança. E eu já estou um bagaço. O terreno, o calor e o peso extra foram me cansando mais que o normal.
Foram precisos mais de 8 horas pra chegar a Itambé. A igreja estava fechada, e levo o enxoval pro hotel. Aqui tive que colocar meu plano B em ação: explico a situação pra Tatiana, que me passa a conta pra transferência. E conto do enxoval: ela diz que conhece uma moça que mora na roça e está grávida. Fica com as peças pra lavar e levar pra ela.
Dia 07 (05/06/2016) – Itambé do Mato Dentro a Ipoema
Distância do Dia: 40,87 km. Distância Total: 275,36 km. Idade dos meus novos amigos: 84 e 89 anos.
Quando ele subiu as escadas do decadente Hotel Estrela (acho que o nome no singular é devido à classificação do estabelecimento) achei que estivesse bêbado. Subiu se agarrando no corrimão e no último degrau quase rolou escada abaixo. Chegou e já foi puxando uma cadeira pra minha mesa na varanda, deixando a capanga na porta da recepção. Chapéu, camisa azul com estampa de cavalo, jeans, botas, só podia estar vindo de cavalgada. “Os companheiros alugaram uma casa mas eu falei que ia ficar no hotel. Eles ficam até tarde bebendo, falando, e eu quero descansar. Fiz 84 anos essa semana, tamo vino de cavalo lá de Itabira”. Para quem não visualizou o mapa, são mais de 50 km.
A cavalgada do dia era tranquila. Desde 2006 seu Eugênio já fez a Estrada Real inteira, de Diamantina a Paraty, três vezes, sempre no lombo do cavalo. “Ah, é bão demais né? Última vez que fui no médico, não tava ouvindo direito, achei que fosse o aparelho mas era só cera no ouvido, ele chamou a minha filha e falou pra ela não deixar eu ficar andando de cavalo assim não. Capaz!”. Seu Eugênio trabalhou 33 anos, sempre na área administrativa: “de início a empresa tinha uma armazém, eu que cuidava. Depois fui pro almoxarifado. E depois pro hospital. Ih, menino, eu poderia ter ficado rico demais se eu quisesse. A gente chateado vendo as notícias de corrupção, se eu te contasse o que eu já vi…” E conta caso, do trabalhos (foi vereador e candidato a prefeito), dos filhos, das cavalgadas. “O povo me chama de vovô das Cavalgadas”, comenta.
Aí se dá conta que ainda não tinha de fato chegado: “acho melhor eu ir tomar um banho né?”. Foi e voltou, camisa limpa com estampa de outra cavalgada. E dá-lhe mais histórias. “Eu lembro de tudo, tudinho, desde que eu tinha 7 anos. Tô escrevendo um livro da minha vida. O moço que tá fazendo a revisão disse que nunca viu história tão bonita”. Antes de ir dormir, seu Eugênio me dá a receita da sua energia: “quando você começar a sentir que vai ficar doente, toma uma dose de conhaque Dreher. Mas não toma igual cachaça não. Toma devagarinho…”
Fui pro quarto querendo uma dose do conhaque: estava com meia dúzia de bolhas em cada pé e a unha 5 – conto as unhas da esquerda pra direita. Então a 5 é a unha do dedão esquerdo – estufada, com um inchaço no entorno que já estava começando a incomodar. Decidi que era hora de drenar. A primeira parte foi fácil: enfiei a agulha na parte de cima, perto da cutícula. Depois no canto esquerdo. Enfiava, passava a linha, e ia tirando o líquido. Aí veio a parte chata: peguei a agulha e enfiei por baixo, entre a carne e a unha, já que ela estava alta, quase saltando do dedo. Isso, vocês sabem, é uma forma de tortura. Eu respirava pelo nariz e soltava pela boca, rapidamente. Apertei a unha e vi o líquido branco escorrendo pela linha…
A drenagem deu resultado. O dedo já não incomodava pela manhã. Como o Hotel e Restaurante Estrela não servia café da manhã (nem jantar na noite anterior), tomei um suco de latinha que tinha, comi uma banana e saí pra rua. A planilha dizia 16 km pelo asfalto até Senhora do Carmo e depois outros dezesseis por terra até Ipoema. Mais uma vez ignorei o guia: ao invés de sair reto, pegando o asfalto, subi em direção à Cabeça de Boi e quebrei à esquerda. Foi andar uma hora até chegar na entrada da Cachoeira Vitória. Me embrenhei no mato por mais um tempo só pra ver de perto os quase 80 metros de queda.
De volta ao caminho, ia admirando a sequência de serras. Lobo, Linhares, Alves… Tava na região conhecida por Conquista. Numa das placas a indicação era Tiá, mas ninguém me confirmou o nome.
Numa das paradas pra fotos, seu Alberico veio subindo no seu burro. Cumprimentou e também desatou a falar. E quanto mais eu perguntava mais ele entrava nos assuntos. Deu nome pras serras todas, falou das várias cachoeiras no entorno e disse que o nome do lugar era mesmo Conquista, por causa do ribeirão. Fiquei curioso com sua idade. “Eu nasci em 1927. Tenho 89 anos. É. Nascido e criado aqui, mas morei muito tempo fora. É. Pra cá eu voltei quando casei, em 54. É. Morei em Belo Horizonte também. Ih, você nem sonhava em nascer. Adivinha quando eu mudei pra Belo Horizonte?” Deve ter sido antes de 54… 50?, chutei. “1942. É. Aquilo ali não tinha nem ônibus, era só bonde e transporte no lombo do burro. É”. E ia afirmando depois de cada frase, como que para garantir que a memória não iria falhar. Seu Alberico trabalhava em uma fábrica de trens, montando vagões. Era preciso seis homens pra carregar uma roda. “Eu trabalhava ali ainda quando o Getúlio Vargas morreu. Ele morreu em 54. É. 24 de agosto de 54. Quando ele morreu fechou tudo. A gente tava trabalhando ainda quando veio alguém perguntar se a gente não tava sabendo. ‘Getúlio Vargas morreu, mas já vão colocar outro no lugar’”. Nessa hora passa um caminhão carregado de gado. Seu Agripino cumprimenta o motorista e volta pro caso. “No mesmo dia chegou um caminhão com soldado, do tamanho desse aí, carregadinho, eles tudo com fuzil na mão. Mandaram a gente tudo largar as ferramentas. Achei foi bão: fiquei três dias em casa”.
Seu Agripino diz que também lembra de tudo, “deus de que eu tinha 10 anos”. Aos 89 ainda vai na feira em Itabira toda semana. De burro. Vende o que planta (“de tudo um pouco: mandioca, inhame, banana”, diz ele) e compra o que precisa. Quando despedimos, eu já com lágrimas nos olhos de emoção, ele me convida a vir uma outra hora, pra gente conversar um pouco mais e ele contar outras histórias.
Quando cheguei em Senhora do Carmo já era meio dia, o sol queimando, eu cansado. A ideia seria ir até Ipoema também por um roteiro alternativo, passando pela Vila de Serra dos Alves, a cachoeira Boa Vista e o Parque Estadual Mata do Limeiro, o que acrescentaria umas duas horas no percurso. Mas eu estava tão cansado que optei pelo caminho demarcado. Fui mecânico, robótico, movendo as pernas sem motivação, só esperando chegar na cidade. A cada parada pra água – com o calor do início da tarde as paradas eram frequentes – eu voltava a caminhar como o Kevin Spacey no final de Os Suspeitos: primeiro meio torno, cambaleando, arrastando as pernas, e só depois me acertava e pegava o ritmo.
Quando cheguei a Ipoema liguei pra uma das pousadas, a Quadrado. Aceita cartão? Aceita. Tem vaga? Tem. Então tô indo.
Nem do portão passei, quando o dono jogou por água abaixo os 500 anos de hospitalidade mineira. “Teve um mal entendido. A gente não abre hoje”. E na minha tentativa de mostra que isso acontece mas ele tem que informar melhor os funcionários, me deu as costas e saiu. Males que vem pra bem: tô aqui na muito mais charmosa e barata Tropeiro Real. Só aceita dinheiro, mas o Ronei garantiu que em Bom Jesus do Amparo, meu próximo destino, tem agência do meu banco.
Dia 08 (06/06/2016) – Ipoema a Cocais
Distância do Dia: 42,08 km. Distância Total: 317,44 km. Carros que passaram por mim na estrada de terra: 0.
Ronei havia dito na noite anterior que café da manhã só a partir das 8h. Mas como eu tinha que resolver o problema de dinheiro em Bom Jesus do Amparo, e banco lá só abre às 11 horas, não adiantava eu sair cedo. Então me dei quase duas horas a mais de sono, acordei às sete e foi comer meu desjejum. Ronei chegou logo depois, tomando achocolatado e comendo pão. Começamos a conversa e logo estávamos falando de música, leis de incentivo, projetos, financiamento coletivo e outros assuntos que me cativam. Ele é fotógrafo, tem dois livros lançados, e obras suas decoram as paredes da pousada. Temos vários conhecidos em comum, gente de banda e produção. O Ramos chegou logo depois e contou emocionado do show do Steve Vai que ele foi, fardado. “Olha aqui, até arrepio!”. Magro, alto, de fala mansa e cativante, Ronei contava também das caminhadas de três ou quatro dias que faz pela região. Contei do projeto AT e fiquei de entrar em contato pra gente fazer alguma caminhada na região.
Com o sol já quente peguei o asfalto pros 14 quilômetros até Bom Jesus do Amparo. Com exceção da bela fazenda Cabo de Agosto, citada por Saint-Hilaire no seu relato do século XIX, nada chama atenção.
Já pouco depois das onze, quando acaba de tirar a foto da igreja em Bom Jesus, Fernando chegou. “Até que você andou bem! Oi, eu sou o Fernando”. Ronei já tinha me falado dele. Disse que divulgava mais a Estrada Real que o próprio Instituto. Batemos papo, trocamos fotos e ele quis saber se eu tinha um tempinho pra escrever no livro de registros que mantém. Na pequena e organizado biblioteca municipal onde trabalha, ele me mostra orgulhoso os quatro livros já completos e o outro pela metade. “Só escreve na página de cá que nessa eu vou colar as fotos”. De sorriso largo e sincero, conta que recolhe doações de livros pra biblioteca. “O editor da Martins Fontes fez a Estrada e eu fiquei esperando ele ali na ponte, que eu sabia que ele tinha que passar. Perguntei pra ele qual livro de caminhada era fundamental. Ele disse que era o Senhor dos Anéis, que eles lançaram. Mas aqui não tem. Então ele mandou pra gente”, conta sorrindo. Fernando fala da cidade, das serras, da Estrada, e em cada frase dá pra sentir o entusiasmo e a paixão dele pelo assunto. Dá vontade de ficar horas.
Mas eu tenho coisas mais chatas pra fazer: vou no banco, saco dinheiro suficiente para as despesas até a próxima agência e caminho com Fernando até a porta da sua casa. Já são 12:30. “Eu só não recomendo ninguém a sair daqui depois de 13:30, por causa da região dos eucaliptos. Nem de bicicleta”.
A região dos eucaliptos… O guia da instituto já alertava, que era preciso atenção nesse próximo trecho até Cocais. O que nem o Guia nem o Fernando nem ninguém que eu li relato da Estrada Real fala é que esse é o trecho menos divertido da viagem. Nem o fato de um tatu ter cruzado a minha frente, nem a siriema na estrada, nem o fato de um bando de macacos ficarem fazendo algazarra, como que tirando sarro da minha cara, melhoraram meu humor. Primeiro porque a paisagem não tem nada demais, se comparado com os dias anteriores. Segundo, porque parte do trecho é feito em asfalto e é preciso cruzar uma rodovia movimentada e mesmo depois de pegar a estrada de chão você fica mais de uma hora ouvindo o zunido de carros e caminhões cruzando a rodovia ao longe. E quando vê esta cruzando a mesma rodovia, indo em direção a um posto de gasolina, sem marcos de sinalização.
Por fim, quando finalmente fica longe do barulho dos motores, você entra na plantação de eucaliptos. Pra mim, plantações de eucaliptos estão no mesmo nível de milharais para cenários perfeitos para filmes de suspense, terror e ficção científica. E você caminha pela porra da plantação de eucaliptos por pelo menos DUAS horas. E a marcação é falha, e o visual é o monótono é sombrio, mesmo durante o dia. E não passa uma alma viva (nem morta) e eu fiquei tenso. A ponto das juntas dos meus dedos da mão doerem. E quando você acha que está acabando, que você vê um riacho e um pouco de vegetação normal, você quebra pra direita e aí que a coisa complica, com eucaliptos de 20 metros te cercando em todas as direções. E sol quase se pondo, e eu sem saber se realmente estava no caminho certo, com a boca seca, mas não parava pra beber água de jeito nenhum. Ah, ali não.
Quando finalmente saí do labirinto, parei, tomei um gole d’Água e chorei. Agora até Cocais seria só mais uma hora.
Entrei na área urbana já escurecendo, com a lua no céu e a lanterna do celular iluminando o caminho.
Dia 09 (07/06/2016): Cocais a Caeté
Distância do Dia: 45,06 km. Distância total: 362,5 km. Surpresas do dia: várias.
Já era noite quando liguei pra Pousada das Cores querendo saber se tinha um quarto disponível. O Éverton atendeu meio desconfiado mas mesmo assim me passou a direção. Mesmo antes de chegar ao quarto já havia gostado do lugar. Do lado de fora a casa no final da rua, com mesas na varanda, chamava atenção pelos detalhes. Dentro, a medida que Éverton ia me guiando, conseguia distinguir esculturas no jardim, um caramanchão e mais coisas que deixavam o lugar singular. Quando passamos por uma sala de estar, ele comentou: “TV se quiser é aqui. No quarto não tem”. Falei que não ligava TV a uma semana. Na portas dos quartos, de paredes brancas e portas e janelas pintadas de cores diferentes – o meu era o goiaba – Éverton continuava o papo que vínhamos tendo. Contava que fez o Caminho de Santiago, “e lá, em alguns lugares, você deita no colchão, daqueles de molas antigos, e sua bunda vai no chão”. Morou na Espanha quando estudava, fez jornalismo, trabalhou no Estado de Minas (“o Roberto Drummond era meu editor na cultura”), no Palácio das Artes, mas resolveu morar no meio do nada: “no meio do nada acham os meus amigos, né? Eu não acho”. E ficamos ali na conversa, eu ainda de pé, querendo tomar um banho, mas o papo rendia. Até que perguntei se tinha algo pra comer na cidade. “Você gosta de caldo? Se for um caldo dá pra fazer. E não sou modesto não: sou cozinheiro de mão cheia”, ele disse. Gosto de caldo, angu, quiabo, jiló, o que tiver eu como. “Ah, então você é a pessoa certa pra fazer a Estrada Real. Desce às 7 que faço pra você”. Mas 7 já são, Éverton (ficamos uma hora de conversa). “7:30 então”.
Desci e consegui me perder entre meu quarto e a cozinha (como mesmo que estou fazendo a Estrada Real sozinho?). Cheguei uns minutos depois do combinado e Éverton estava acabando de raspar a panela. “Você já quer comer? Pega esse prato aí então. E essa outra vasilha”. Fomos pra um salão enorme, pra pelo menos umas 120 pessoas. E ficamos só nós dois ali, sentados quase frente à frente, cada um com seu caldo de mandioca (ele estava certo: é mesmo cozinheiro de mão cheia) e eu ainda com três pães de inhame, que Éverton também quem fez. “Comi desse pão o dia inteiro. Tô aqui só pra te fazer companhia”. No tempo que devorei três pratos enormes do caldo, falamos sobre mais uma pancada de assuntos. Éverton disse que foi seminarista (“mas hoje não tenho religião, nem time de futebol, nem partido político e sou assexuado”) e que montou a pousada com a ideia de fazer um mosteiro. No terreno tem também uma igreja pra 100 pessoas e dos tempos de seminário guarda amizades com padres e freiras. “As freiras veem aqui e eu pergunto: irmã, quer uma cervejinha? Elas acham que não vai pegar bem então eu falo: preocupa não! Eu boto num bule esmaltado e a gente bebe na xícara. Se chegar alguém a gente fala que é chá. E fico aqui tomando o chá das cinco com as freiras”. Eu caio na gargalhada e ele conta vários outros causos, impublicáveis (porque vou deixar a surpresa pro livro que ele mesmo está escrevendo).
Se não bastasse, ele ainda fábrica licores e vinagres de vários sabores. “Aliás, também estudo a peidologia”, completa. E já emenda: “e doce, você gosta? Hoje tem de mamão, de banana com chocolate e goiaba com banana. E sorvete? Os sorvetes a gente faz aqui são excelentes. Tem dê araticum e abacate. Experimenta”. Me ganhou na simpatia, na conversa e no estômago. Volto a Cocais só pra passar mais um dia com ele.
E na hora de ir ver o jornal, assiste na companhia de Joãozinho e Mariazinha, os dois novos habitantes sortudos do lugar: “devia existir um chef pra comida de cachorro né? Ração é ruim demais. Os meus amigos passam bem. Compro fígado de galinha e misturo na ração deles. Eles ficam olhando pra mim pensando assim: ‘nossa, esse meu humano de estimação cozinha tão bem’”. Subi pro quarto ainda cheio de admiração.
Ele havia deixado a chave do portão pra eu sair. Ainda não eram seis quando deixei a pousada, mas só cheguei ao primeiro marco do Caminho de Sabarabuçu uma hora depois. Na noite anterior, quando cheguei, confesso que não havia seguido os últimos marcos: me guiei pela sugestão do Google Maps. Agora pela manhã, querendo fazer a coisa certa, fui acompanhar a (eu já disse isso?) confusa planilha do Instituto. E dei uma volta danada por ruas sem marcos até chegar onde queria.
Deixar o Caminho dos Diamantes e começar o Caminho do Sabarabuçu era dúvida até ontem. Tudo por causa do crime ambiental em Bento Rodrigues. Não fosse isso, continuar por Barão de Cocais, Santa Bárbara, Catas Altas, Santa Rita Durão, Camargos, Mariana e Ouro Preto era o caminho mais sensato (e rápido). Com a interdição do trecho entre Santa Rita e Camargos, onde estava Bento Rodrigues, a opção seria ou ir pelo asfalto ou pegar o Sabarabuçu em Cocais, que foi o que fiz.
Aliás, meus planos originais eram fazer o Caminho dos Diamantes, só ele, no final de outubro e início de novembro do ano passado. Como apareceu uma viagem pra China a trabalho (como recusar?) na mesma época, adiei a caminhada. Pela minha programação original, faria o trecho de Santa Rita a Camargos no dia 5 de novembro. O dia que a represa se rompeu…
Menos de uma hora depois de cruzar o primeiro março, estão lá, de novo, os eucaliptos. Menor que o do dia anterior, cruzei a plantação com o mesmo nervosismo.
O sol demorava a surgir e era fácil andar num bom ritmo pela manhã. Passei pelo distrito de Antônio Carlos e segui contornando o Morro da Piedade. Faltando uns 10 quilômetros pro final, o tempo está escuro e sinto as primeiras gotas. Paro, tiro a mochila, pego a capa e quando boto a mochila de novo ouço um zumbido. Mais rápido que eu, o marimbondo/vespa/abelha/sei-lá-o-que de Itú (o bicho era quase do tamanho de um beija-flor, juro!) finca o ferrão na minha nuca. Ainda agora, seis horas depois do ocorrido, sinto meu pescoço dolorido. A chuva, coitada, nunca veio.
“Caeté é do lado de Belo Horizonte”. Ficava pensando isso a medida que me aproximava. Mas só quando passei na porta da rodoviária e vi um ônibus lotação (executivo, mas lotação) me dei conta do quão perto as duas cidades estão (são 45 km, a mesma distância que tinha andado). Me aproximei e perguntei pro motorista: “esse ônibus sai que horas?” 4:10. “E demora quanto tempo a viagem?” 90 minutos. “É o primeiro ônibus de lá pra cá que horas sai?” 6:30. Não tive dúvidas: entrei no busão e vim passar a noite na melhor pousada de todas: a minha casa.
Dia 10 (08/06/2016) – Caeté a Sabará
Distância do dia: 36,38 km. Distância total: 398,88 km. Passos dados nesses primeiros dez dias: 504.570.
Na linguagem dos caminhantes de longa distância nos Estados Unidos, “slackpacking” é um termo que significa caminhar sem a sua mochila. Pro pessoal mais puritano é preciso completar a trilha toda carregando tudo o que você precisa, o tempo todo. Para outros você tem que ir a pé do início ao fim. E se você deixar sua mochila de lado por alguns dias não compromete o êxito da sua jornada. No Caminho de Santiago muita gente “slackpack” mandando a mochila de uma cidade a outra de taxi. Na Appalachian Trail, em alguns pontos é possível andar um dia ou dois sem carregar o mochilão. Como passei a noite em casa resolvi negligência os 8 quilos da mochila pelos próximos dias. Ou seja: eu fiz slackpacking.
Quando cheguei ontem de surpresa Alê não pode acreditar. Nem Tati, nem Jade, nem Lis, nem Rick. Matei a saudade que já era grande e aproveitar pra me cuidar: fiz um escalda-pés, tratei as bolhas (já tenho uma meia dúzia, mas estão controladas. A unha 5 ainda resiste e a 7 agora ameaça cair) e pedi minha pizza predileta. Coisas simples que me fizeram falta na última semana.
Levantei às 5:30, mas como sempre acordei várias vezes antes. Deitei às 11h, mas às 2h já achava que era hora. E de novo às 4h. Quando finalmente chegou a hora tomei um espresso duplo (nada de chafé por hoje) e pedi um Uber.
Cheguei na rodoviária com 15 minutos de sobra e Jurandir me abordou na entrada do ônibus: “você tem um telefone? Liga a cobrar pra minha mulher e diz pra ela que Tô indo pra casa? O número é 6… Não. 68… Peraí. 75…” Ainda estava bêbado na noite anterior. Tinha saído de Caeté com o amigo Tinho pra uma noite de bebedeira em BH. Na saída pra Santa Luzia pararam num boteco, beberam todas e brigaram entre si. “Mas foi uma briga boa! Uma rinha de galos!”. Chegou a polícia e os dois foram dar um passeio de caburão. “Tinho foi na frente, mas eu ia lá na grade, igual passarinho”. Liguei pra dona Sônia e dei o recado. “Fala pra ele que vou estar esperando na rodoviária”, ela disse. Jurandir e Tinho desceram um ponto antes.
Peguei o ônibus às 6:3o levando o básico: boné, protetor solar, capa de chuva, celular, lenços umedecidos, meus bastões de caminhada, umas frutas secas, um litro de água e uma mochilinha de 10 litros. Estava leve, iria fazer os 35 quilômetros até Sabará e voltar de novo pra casa.
Eu já disse que a sinalização do Instituto Estrada Real é ineficiente, né? Aqueles totens grandes e caros, onde é impossível ler as informações sem parar e limpar a poeira. Em mal estado de conservação, muitas vezes encobertos por mato ou no chão. As planilhas difíceis de serem entendidas, e quem quiser ver as informações totais tem que abrir três arquivos: a planilha, com as distâncias entre os totens; o guia, com informações sobre as cidades e pontos de alimentação, hospedagem e carimbo; e a planta de altimetria. Um suplício. Mas o que era ruim no Caminho dos Diamantes fica ainda pior no Sabarabuçu. Como se fosse o primo pobre dos quatro caminhos, tem ainda a desvantagem de passar por cidades relativamente grandes, como Caeté e Sabará. Nestas, os totens vão até o perímetro urbano. Dali até a região central, onde estão muitas das pousadas e atrações, é um salve-se quem puder. Você tem que pedir informação, usar seu aplicativo preferido ou simplesmente seguir o fluxo. E esse deslocamento pode durar uma hora ou mais.
Ontem em Caeté o último totem era tão distante do ponto final que achei melhor pegar o ônibus pra BH e carimbar o passaporte hoje pela manhã. E hoje, saindo da belíssima matriz, já tinha gastado uma hora e andado 5 quilômetros quando cheguei ao primeiro totem, às nove.
A partir daí o passeio foi tranquilo. Com os pés descansados, com o dia nublado e sem o peso da mochila, já tinha chegado ao distrito de Morro Vermelho às 10h. Parei pra conversar com dois ciclistas (obrigado pela banana) e segui rumo a Sabará. O passeio é agradável, com um rio correndo quase todo tempo à sua direita, paredes de samambaias à esquerda e barulhos de mata e trem (se você abstrair que são vagões e vagões de minério sendo tirados das nossas montanhas fica mais agradável).
Só que o trecho perdeu uma parte de trilha. E a partir de determinado ponto os marcos param de existir. Não que fizessem tanta falta (é só seguir a estrada principal) mas o descaso incomoda. O que ajuda são as marcações do CRER, o Caminho Religioso da Estrada Real, que usa totens muito mais simples e práticos. Na chegada à Sabará, outra caminhada sem orientação até o Teatro Municipal, ponto do carimbo.
E dali foi só descer e pegar um circular até BH, pra mais uma noite em casa, com família e escalda-pés.
Dia 11 (09/06/2016) – Sabará a Rio Acima
Distância do dia: 39,06 km. Distância total: 437,94 km
Talvez hoje tenha sido o melhor dia de caminhada até agora. O que não quer dizer que tenha sido um dia fácil…
Ontem ponderei seriamente em tirar o dia de folga. Tenho planejado um dia de descanso a cada 10 dias. Mas como Alê está planejando de ir encontrar comigo em Santo Antônio do Leite no sábado, achei melhor ir caminhar, mesmo com minha perna esquerda inchada. Faz uns dias que isso tem me incomodado pela manhã, com uma dor pequena na parte de trás do joelho.
Acordei às 5:30 depois de ter dormido pouco (já que estou em casa fui colocar uma das séries em dia…) e quando coloquei o pé no chão o incomodo já estava lá. Fui assim mesmo pegar o ônibus pra Sabará. Quando cheguei lá às sete já não sentia. Ótimo. A ideia era percorrer três trechos da Estrada Real: a primeira parada em Raposos, depois de 13 km; a segunda em Honório Bicalho, depois de mais quinze quilômetros e finalmente Rio Acima, depois de outros dez quilômetros. Sabia que o percurso tinha trechos de trilhas, algumas técnicas, mas nada havia me preparado pelo que estava por vir.
O ônibus me deixou exatamente onde a trilha começa. Cruzei o Centro Esportivo de Sabará e segui rumo ao bairro de Arraial Velho, um simpático aglomerado de poucas casas modernas e uma igreja antiga. O local foi fundado por Borba Gato há mais de 300 anos.
Subi a rua de pedras e depois de algum tempo o silêncio só era quebrado pelo bondinho de minério acima. No percurso é possível ver ruínas de casas de pedras. Em determinado momento a trilha termina em frente à porteira de uma fazenda: é preciso entrar, dar seu jeito pra se esquivar da meia dúzia de vira latas e sair pelo portão do fundo, onde começa a primeira descida em trilha que exige técnica. Pedras com lodo, lama, tudo muito escorregadio e os dois bastões de caminhada foram fundamentais (se estivesse só com um talvez teria problemas).
A trilha termina na confusa e pouco atrativa Raposos. Mas dali é só passar a igreja, depois a ponte e subir, subir, subir. Rumo às antenas de comunicação, quando a placa indicar “rua sem saída”, não dê bola: é aí que a diversão começa. A trilha segue um pequeno curso d’água por alguns quilômetros. Do outro lado a vista das aberrações do Belvedere e Nova Lima (por mais que não goste daquela torre, nem de todos aqueles espigões verticais que puseram ali, confesso que bateu uma emoção em ver BH ali tão perto. Diria que daria pra ir andando…)
Cinco quilômetros nesse cenário e a coisa começa a ficar divertido de verdade. Descidas fabulosas, por meio das erosões, rios que precisam ser atravessados – acho que foram três, o último com água pouco abaixo do joelho – e subidas que exigem preparo e disposição. Diversão pura! E BH ali do lado… E quando você acha que acabou, a menos de um quilômetro da cidade, da-lhe outra descida absurda.
Da pracinha de Honório Bicalho é só seguir a linha do trem para os últimos 10 km até Rio Acima. Trilha fácil, tranquila, com surpresas como uma antiga ponte de pedra, é o desfecho perfeito para um dia difícil, mas extremamente agradável.
Dia 12 (10/06/2016) – Zero
Então vamos ver: minha unha 5 ainda está no lugar, apesar de bamba. Bolhas se formaram ao redor da unha, onde a pele varia do tom branco-pus ao vermelho-inflamado. Normalmente não dói, mas se esbarro em algum lugar – na calça quando vou vestir, por exemplo – a dor é tremenda. Falando em bolhas, a maior, com uns 2,5 centímetros de diâmetro no pé direito, já arrebentou naturalmente e a nova pele é tão sensível quanto bumbum de bebê. O dedo 9 está com uma bolha nova na ponta que tem incomodado. E duas bolhas estão presentes em cada calcanhar, além de outra na lateral do pé, perto da fíbula. O tornozelo esquerdo está inchado, com manchas vermelhas, e ainda não sei se é reação alérgica ou inflamação. As duas panturrilhas já não doem tanto. Joelhos tem dores leves, que poderiam ser muito mais severas se não estivesse usando os bastões. Doem também as coxas. Tenho assaduras, irritações na virilha, um machucado na cintura, talvez pela fricção do porta-objetos que levo dinheiro, documentos e celular, as únicas coisas que não vão na mochila. Depois de três dias de caminhadas com a mochila pequena as dores nos ombros estão melhores. E minhas mãos doem de ficar mais de oito horas por dia segurando os bastões, e no tempo que tenho de descanso uso os dedos para atualizar no celular esse blog. A cabeça está ótima e descansada.
Fazer uma trilha de longa distância é extremamente desgastante fisicamente. Nestes primeiros onze dias foram percorridos uma média de quase 40 quilômetros por dia. Uma maratona todo dia, por onze dias seguidos. Meu corpo está um bagaço.
Por isso eu precisava de um zero. Um zero é um dia onde você não anda. Não se aproxima nem um quilômetro do seu destino. Tinha programado três zeros nos 1100 km até Paraty, o primeiro neste domingo, quando Alê iria me visitar em Santo Antônio do Leite. Mas estava cansado, fatigado, e até lá teria pelo menos mais um dia longo, de Rio Acima a Glaura, com quase 45 km. Resolvi adiantar.
Voltei ontem de Rio Acima, no ônibus das 4:30, e com o trânsito ali no entorno do BH Shopping do fim do dia não cheguei em casa antes das sete da noite. E ao invés de retornar a Rio Acima hoje de manhã fiquei em casa. Dormi até às 9, tomei um farto café da manhã e logo depois um almoço. Cuidei dos ferimentos, fiquei de perna pra cima e descansei. Amanhã pego o ônibus cedinho de volta a Rio Acima. Caminho os 45 km até Glaura, onde Alê me encontra. Domingo cedo faço os fáceis 14km até Santo Antônio do Leite, onde fico mais uma noite com ela. É a partir de segunda, tudo volta ao normal: longas caminhadas, pousadas baratas, mais dores, mais bolhas. Entro de sola no Caminho Velho, que me leva até Parati. Se tudo correr como programado faço mais dois zeros e chego lá no inicinho do mês que vem.
Dia 13 (11/06/2016) – Rio Acima a Glaura
Distância do dia: 47,53 km. Distância total: 485,47 km. Da importância de dias como esses.
Dias como esse são de extrema importância em caminhadas de longa distância. Primeiro, era um trecho longo, de mais de 45 km. Dias assim exigem não só preparo físico como determinação. A vontade de parar na metade é grande: em algumas horas a vontade é aceitar aquela carona que vez ou outra alguém te oferece ou entrar no primeiro ônibus que passa. Além disso, este era meu primeiro dia de retorno, depois do conforto de casa. Recomeçar depois de um dia parado é sempre complicado. E as lembranças da cama quentinha, do travesseiro na consistência certa, dos banhos demorados, dos lava-pés com sal grosso e ervas, da comida predileta continuam com você. Eu estava ainda sentindo a perna esquerda e o dedão inflamado só doía quando eu pisava. E isso continuou assim durante todo o percurso. E durante toda a parte da manhã uma chuva fina e chata me acompanhou. Pra finalizar, a parte da lua de mel com a paisagem acabou. Não que o que eu via fosse feio, pelo contrário. Mas passou a novidade, e aquele mar de montanhas já não causava tanto impacto. Por mais bonito que fosse era só mais do mesmo.
Em dias assim, chuvosos e você saudoso e indo além do seu esforço normal é que você se pergunta “o que eu estou fazendo aqui?” (Na verdade a pergunta é mais “onde diabos eu estava com a cabeça quando decidi fazer a merda dessa caminhada de 1100 km? Você por um acaso ficou doido Jeff? Tá afastado de deus?”). Aliás, essa é uma dúvida frequente, tanto de amigos quanto das pessoas que você encontra na jornada.
Zach Davies é um caminhante de longa distância americano que escreveu um guia psicológico e emocional para se completar a Appalachian Trail. É isso mesmo: um guia psicológico e emocional para caminhar. Porque esse é dos pontos que mais fazem pessoas desistirem de uma caminhada longa. Zach sugere que se faça uma lista com os motivos que levaram você a fazer a trilha, o que irá mudar se você completar e o que acontecerá se você desistir.
No meu caso, fazer a Estrada Real é mais que uma viagem geográfica. Mais que conhecer as cidades e montanhas e cultura é uma forma de me conhecer melhor, de saber dos meus limites e pensar meus atos e decisões. É uma viagem pessoal. Sou eu e meus pensamentos sozinhos, ali no meio do nada. É tentar vencer alguns medos e ideias que tenho. É uma forma de ganhar confiança e auto estima. É voltar às minhas raízes e origens, depois de ficar muito tempo com a cabeça fora. Ao completar espero estar mais focado, mais confiante, mais ciente de quem eu sou é de onde vim e claro, em melhor forma física. E desistir é confirmar alguns de meus medos e incertezas: que não completo o que proponho, que não me dedico aos meus projetos como deveria, que não foco no que é realmente importante naquele momento.
Além disso, acredito que andar é parte da natureza humana. Somos seres nômades. Gostamos do conforto e das facilidades da vida moderna, mas nascemos para estar em movimento. Somos curiosos e a busca pelo desconhecido é parte da nossa razão de estar aqui. É graças a isso que nossos ancestrais saíram da África. É por causa disso que os europeus vieram pra América. É por isso que os bandeirantes entraram mato adentro e chegaram às Minas Gerais. Queremos ir além, e a forma mais natural que temos para isso é usando nossas pernas.
E quanto estar afastado de deus, se ele existir, andar longas distâncias, peregrinar, talvez seja a melhor forma de se aproximar dele, não se afastar. Tanto que a peregrinação é parte importante das maiores religiões do mundo. Muçulmanos peregrinam a Meca. Budistas japoneses fazem a peregrinação à Shikoku, um caminho de 1200 km. Budistas Indianos peregrinam a Lumbini, onde Buda nasceu. Cristãos tem em Santiago de Compostela o maior exemplo. O ritmo de seus passos e dos bastões no chão é um mantra. Estar em silêncio ouvindo seus passos e a natureza por horas a fio é uma forma de oração.
Portanto, são dias assim que te fazem pensar na jornada e nos seus objetivos. Se não fossem dias assim não haveria a reflexão.
O percurso? Longo e cansativo. Com ele encerro o que me propus a fazer do caminho do Sabarabuçu. Ironicamente meu projeto não inclui Ouro Preto: daqui já saio pra fazer o mais longo dos três caminhos, o Velho. A partir de amanhã, começa tudo de novo.
Dia 14 (12/06/2016) – Zero
Dia 15 (13/06/2016) – Santo Antônio do Leite a Congonhas
Distância do dia: 51,79 km. Distância total: 537,26 km.
Não tá errado não. É isso mesmo. No capítulo anterior nosso caminhante terminava em Glaura. Nesse ele começa em Santo Antônio do Leite. Erro do continuísta? Já explico.
Cheguei em Glaura no sábado e Alê me esperava. Tínhamos reservado uma pousada em Santo Antônio do Leite pra passar o final de semana. A ideia era no domingo eu fazer o caminho de volta e ela me pegar de novo na Matriz. Mas na estrada fui reparando que o trecho de 14 km entre uma cidade e outra é todo feito no asfalto, sem acostamento. Aquele pedaço não iria acrescentar em nada na minha caminhada. Decidi pular. Não é que eu não tenha feito o trecho: eu fiz, só que que carro…
Usei o domingo pra relaxar, curtir minha esposa, passear por Ouro Preto (que também está do lado) e resolver um assunto pendente: ali eu terminava o Caminho do Sabarabuçu e tinha direito a pegar meu certificado, junto com o do Caminho dos Diamantes. Independente de ter passado em todas as cidades, o Instituto emite o certificado com base no número de carimbos do seu passaporte. Eu já tinha dez dos Diamantes (mesmo pulando Santa Bárbara, Catas Altas e Mariana) e quatro dia Sabarabuçu.
Hoje esperei o café na pousada e saí por volta de 8h. Alê me deixou no primeiro marco (a pousada não ficava a mais de 1 km da saída, e em um dia como hoje, que esperava andar 46 km, qualquer distância conta). Na pousada o Manoel já havia avisado: o trecho seria plano e sombrio. É assim foi. Com o dia frio (só tirei a blusa lá pelas duas da tarde) e alimentado, não parava nem pra beber água. Os 9 km até Engenheiro Correia foram feitos em pouco mais de 90 minutos. Parei pra água e uma maçã em Miguel Burnier, 12 km adiante, pouco depois do meio dia. E às 15h já estava na charmosa Lobo Leite, a 37 km de Santo Antônio. Uma média de 5,5 km por hora. Ótimo.
Depois de Lobo Leite, o antigo Arraial de Soledade, a coisa complicou. A planilha do Instituto marcava só mais 8,92 km até Congonhas. Já na saída um problema: as marcações do CRER, o Caminho Religioso da Estrada Real, marcavam quase o dobro. A razão é que o IER termina o trecho na rodoviária de Congonhas, que fica na entrada da cidade, sem se importar que no dia seguinte o trecho comece no Santuário de Bom Jesus do Matosinhos. A planilha do CRER iria até lá. Eu tinha duas opções: parar na rodoviária e pegar um ônibus até o Santuário ou andar um pouco mais que o previsto. Preferi caminhar.
Só que como sempre entrar e sair de cidades não é tão simples quanto se parece. Congonhas está às margens da movimentada 040. De Lobo Leite até ali o trecho já tinha oferecido algumas boas ladeiras e o Santuário está na parte mais alta da cidade. Somando isso tudo gastei mais duas horas pra chegar. No total mais de 50 km de caminhada no dia (Tô me acostumando com esses trechos longos).
Dia 16 (14/06/2016) – Congonhas a Entre Rios de Minas
Distância do dia: 40,57 km. Distância total: 577,83 km. Outro dia tenso…
Ah, Instituto Estrada Real. Você ainda me mata…
Já disse que o guia da Estrada Real que o IER disponibiliza online é ruim né? Confuso, mal editado, mal resolvido. Além disso não se pode confiar nas informações. Exemplos? Quando cheguei em Congonhas esperava encontrar o posto de informações turísticas fechado. O guia dizia que fechava às cinco e já eram quase seis. Quando vi o local aberto falei com o atendente. “Ah, tem isso não. Eu saio às seis, mas tem gente aqui até mais tarde”. O mesmo havia acontecido em Eio Acima, onde literalmente corri (depois de ter andando o dia todo) pra tentar pegar a Secretaria de Cultura aberta às cinco, pra chegar lá às 4:55 e saber que só fecha às seis.
Em Congonhas carimbei o passaporte e aproveitei pra pegar dica de um pousada mais em conta que o caro hotel indicado pelo guia. “Tem a pousada do Luizinho. Só subir essa rua direto e perguntar na padaria”. Quando cheguei ele me mostrou os quartos. Fiquei no mais simples e desembolsei 35 reais. “E pra jantar, Luizinho? Tem alguma coisa por aqui?” “A padaria tem janta até as 7”. Ótimo. Tomei meu banho, desci me escorando as escadas da pousada, subi com esforço a rua e mais esforço ainda as escadas do restaurante anexo à padaria e pedi à minha janta, sem saber o que viria. Um pratão de arroz, feijão, abóbora, carne de panela, repolho cozido e angu foi devorado em tempo recorde (tenho que convidar o povo do Guinness da próxima vez). Voltei pro meu quarto de 2×2, sem banheiro, satisfeito.
Com o frio (tem feito tem torno de 10 graus pela manhã) foi fácil andar ligeiro. Pensei que fosse pegar uma estrada de terra, mas a Prefeitura de Congonhas resolveu pavimentar a Estrada Real até Alto Maranhão. Terra só depois de passar pelas ruínas da antiga cadeia. Até Pequeri o trecho foi tranquilo, e depois disso melhorou: em Pequeri a estrada termina em uma fazenda, que você precisa atravessar e pegar uma trilha ideal: com sombra, sem carros, de terra, com pouco desnível. Mesmo depois dela o trecho segue gostoso até São Brás do Suaçuí.
Aí que começou o tormento. Cheguei na cidade pouco depois das 11h. Lanchei, parei na praça da Matriz pra checar as bolhas e trocar o curativo da unha, fiz ali uma meia horinha e saí. Na planilha do IER a instrução é seguir em frente, virar à direita saindo da rodovia depois de 1,48 km e depois de mais 650 metros à esquerda, atravessando uma porteira. Mas ninguém atualizou a planilha depois das obras que fizeram um trevo na saída da cidade. Fiquei pelo menos 45 minutos procurando onde virar e nada de marco. Nem porteira. Nenhum caminho possível à esquerda ou direita. Com o sol de meio dia na moleira, fiz o que achava certo: venha a mim, são Google Maps. Que me mandou pegar a estrada. E eu fui. Quando o mato estava baixo, o que nunca acontecia, ia por ele mesmo. Mas na maior parte do tempo era tentando me fazer caber nos 20 centímetros de acostamento, colocando o bastão na pista pra tentar ter algum espaço entre eu e os carros que passavam a 150 km/h (incrível como quando você está a pé os carros parecem passar mais rápido). E numa dessas tchau óculos de sol. Foi e já era.Depois de uma hora noite uma estrada de trem próximo. Resolvi ir por ela. E meia hora depois a ferrovia entrava em um túnel: eu não iria me arriscar. Voltei pra MG383.Até que São Google, ciente da minha aflição, me jogou em uma estrada de terra. Agora vai, pensei. Rezei uma ave-maria, agradeci por ainda estar vivo, e fui. E da-lhe cerca, porteira, boi, vaca, mais cerca… O que pro Google era a rua José Geraldo de Oliveira, na prática é uma sequência de pastos. Que me deixaram em Entre Rios, é verdade. E longe da rodovia.Na chegada ao Hospital Cassiano Campolina, ponto de chegada da Estrada Real na cidade, ainda tentei achar um marco oficial. Nada.
Dia 17 (15/06/2016) – Entre Rios de Minas a Casa Grande
Distância do dia: 31,29 km. Distância total: 609,12 km.
A dúvida era se eu incluiria Casa Grande ou seguiria direto pra Lagoa Dourada. Tanto em Congonhas quando na Secretaria de Turismo de Entre Rios a opinião era que Casa Grande era muito fora do roteiro e que não valeria a pena passar por lá. Indo direto pra Lagoa Dourada seriam pelo menos 30 km a menos. Mas o caminho seria pela 383, e quando saí pela manhã já tinha a certeza que não iria enfrentar essa estrada de novo. Não como ontem.
Mas passar por ela era inevitável. Os primeiros 4 km, mesmo indo por Casa Grande, passagem pela 383. Saí um pouco mais tarde do que queria – na pensão o café começava às 6:30 mas até as 7:00 não tinha nada na mesa – e ainda assim a neblina encobria tudo. Não se via um palmo à frente e de novo o tempo na rodovia foi tenso. Ia abanando minha bandana pra chamar a atenção dos motoristas que tiravam um fininho de mim. Quando peguei a estrada de terra foi um alívio.
O sol só foi surgir mesmo depois das 10h. Até lá era névoa e frio. O termômetro do telefone marcava 8 graus quando sai, e antes do sol não passava dos 11°C. O caminho é tranquilo, e eu ia subindo curtindo o frio, a paisagem e não encontrava ninguém. Unha, pé e perna não incomodavam mais que o usual e o dia ia rendendo. Quando parei em Camapuã, na porta do Bar dos Amigos Dazonze e Meia, uma senhora saiu de casa. “Com esse tempo desse jeito periga o povo perder a hora”.
Uma hora depois foi a vez do Seu Anemércio cruzar meu caminho. Vinha todo bem vestido, de camisa de flanela, calça social, chapéu e óculos escuros montado em seu cavalo branco. “Ih, esse aqui tem mais de 50 nomes”, ele me disse quando perguntei o nome do animal. Estava indo na casa de uma das filhas. A outra mora em Carmópolis. “Ela quer me levar pra lá mas eu não vou não. Não gosto desses lugares onde até pra mijar e cagar tem que pagar. Aqui não: deu vontade vai ali atrás”. Aos 80 anos, Seu Anemércio começou a tomar remédios só recentemente. “Fui casado 40 anos. E depois que eu casei que fiquei sabendo que na família dela todo mundo sofre dos nervos. Minhas cunhadas, uma delas advogada, metida a sabida, veio aqui e tirou minha mulher de mim. Tanto fez que ela pediu o desquite. Eu toquei os caramujos. Depois minha mulher ficou sabendo que tava com câncer no cérebro. Morreu faz dois anos”. Ficamos ali nuns 15 minutos de prosa, que valem uma vida. Quando despedimos, ele já indo, se vira pra trás e fala: “mas agora eu quero arrumar outra companheira. Tem 16 anos que moro sozinho. Mas nova demais eu não quero não. Nem velha…”
A dica de seu Anemércio era ir seguindo os piquetes (“como é que chama esses mourões de cimento? Marco? Pra mim é piquete”) até Serra do Camapuã, a próxima cidade. No caminho iria passar pela capela de Santo Antônio do Madruga (que eu vi) e depois pela Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Olhos D’água, que queria muito ver, mas passei batido. Acho que não segui todos os piquetes, passei errado em alguma curva e cheguei na Serra pela rua de baixo, e não na de cima. Ia entretido respondendo às perguntas que minha amiga Sara Michelini havia me enviado para uma matéria no jornal Agora, de Divinópolis, minha terra natal.
Em Serra do Camapuã revi a planilha e vi que a Igreja dos Olhos D’Água ficava a quase 5 km. A Igreja, pelo que haviam me falado em Entre Rios, era por volta do ano de 1700, parecia um charme mas não havia a menor chance de andar mais 10 km só pra vê-la. Fui em frente subindo devagar – nesse horário o sol já estava forte, mas ainda mantinha uma das blusas – até a entrada de Casa Grande.
Na chegada, uma surpresa. Espalhado por uma das pistas do asfalto estava um tapete de feijão, com um moço – que eu de tão surpreso nem perguntei o nome – espalhando os grãos pra secar. “Quanto têm aqui?”, perguntei. “Ah, deve ter uns 1500 quilos. Molhou vindo da fazenda e secando aqui agora de tarde tá pronto”.
Casa Grande é uma cidadezinha simples, com uma ou outra casinha charmosa. É a primeira cidade onde não pega celular (“só lá pra cima, depois do campo de futebol”) e na pousada da dona Irene, que nem placa na porta tem, não tem “esse trem de Internet”. Passo a noite aqui, depois de comer um pão com linguiça e um x-egg-bacon-burger do bar do Negão, enquanto a janta da Dona Irene não fica pronta.
Dia 18 (16/06/2016) – Casa Grande a Prados
Distância do dia: 53,67 km. Distância total: 662,79 km
Na conversa ontem em Casa Grande com o Negão no bar dele, ele me disse que sinal de celular era só subindo o morro. Fui lá pra tentar dar notícias pra Alê que eu tinha chegado e estava tudo bem. Lá em cima é onde tem também um campo de futebol. Sentei num dos banquinhos de madeira, mandei notícias pra família e peguei um pouco de sol nos pés. Não sei se tem fundamento mas acho que é bom pra secar as bolhas. De qualquer forma tava gostoso ali, fazendo uns 18 graus naquele fim de tarde.
E com o pé ao sol comecei a fuçar na unha 5. Ela já estava bamba, com o lado esquerdo um pouco inflado, o que doía a cada pisada. Peguei a ponta da unha e levantei. Nada de dor, mas um alívio tremendo. Continuei puxando e senti que ela só estava ali por causa da cutícula. Aflito, com medo, tomei coragem e puxei tudo. Ela saiu inteira. Dor nenhuma. Mas um cheiro de coisa doente saiu do dedão. Por baixo da unha tinha uma película, uma unha nova, já crescida, inteira, mas macia, mais transparente que o normal. A ferida na pele não estava bonita. Por incrível que parece o alívio foi imediato. Nada de dor e no caminho até a farmácia a sensação era que tinha tirado um alfinete do dedo. Comprei o básico pra assepsia: água oxigenada, mertiolate, algodão. Pomada e gase eu já tinha. O dia seguinte seria o primeiro de caminhada com 9 unhas (também perdi uma no Caminho da Fé, a 6. Mas ela caiu depois que já tinha terminado a caminhada).
Voltei pra pensão da Dona Irene pro jantar. Me contive em dois pratos de caldo de mandioca (lembre-se: já tinha devorado dois sanduíches no Negão…) Dona Irene disse que não era de acordar cedo, mas seu Zeca podia fazer um café lá pelas sete. Não esperei: antes disso já tinha botado em meu embornal e pegado a estrada.
Devia ser sete ou pouco depois disso quando pela primeira vez na viagem fiquei apreensivo com uma pessoa. Devia ter andado não mais que meia hora quando passou por mim uma moto. “Opa!”, cumprimentei. A moto seguiu uns duzentos metros, parou e deu meia volta. Epa… Meu sentido-aranha já ascendeu a luz amarela. Ele veio e deu a volta por trás de mim. Seguiu pareado no meu lado direito, fazendo perguntas. Várias perguntas: “onde você tá indo animado nessa hora? De onde você vem? Onde você ficou hospedado? O que você leva nessa mochila? Pra que esses paus na sua mão?” Com a pulga atrás da orelha ia respondendo, limitando as respostas ao básico, mas tentando ser simpático. Ficou ali uns minutos até que resolveu ir. “Vou estar colhendo feijão ali na frente, logo depois da descida. Passa lá pra gente conversar mais”.
Como era no meu caminho não tinha como eu não passar. Depois da curva, na descida, tinham duas pessoas na colheita, motos parada no terreno à frente, meu amigo encontrado na cerca. Sentido-aranha de novo… “E aí? Vai até onde? O que é esse negocio dependurado aí na mochila? Essa água aí vai dar? Tem mais água dentro da mochila? Só tem isso mesmo que você falou? Mas você tá animado demais. Pula aí pra dentro pra ajudar a gente a colher feijão.” Foi minha deixa: “rapaz, animados são vocês que vão ficar aí colhendo feijão o dia inteiro, debaixo do sol”. E a partir daí o papo virou uma aula sobre plantio e colheita de feijão. Aprendi que se planta duas vezes por ano (na seca e nas águas), que a média são 40 sacos por hectare (mas uma fazenda da região esse ano deu 45), que por causa da pouca chuva a produção tá pequena, que cada saco de 60 quilos tá entre 300 e 600 reais, dependendo do tipo do feijão, que por dia de colheita o pessoal pode ganhar até 180 reais mas que a colheita é feita só até meio dia. De novo, minha deixa: “então deixa eu ir porque quando você estiver terminando aqui eu tenho que estar chegando em Lagoa Dourada. Valeu pela conversa. Qual seu nome?” “Fábio. E o seu?”
No final das contas Fábio era só um cara tão curioso quanto eu, impressionado com um maluco ali onde não passa quase ninguém, às sete da manhã, indo a pé até a próxima cidade, a 30 quilômetros de distância. Mas ainda assim a cada vez que ouvia um motor de Honda vindo em minha direção eu encostava e olhava pra ver se não era o Fábio.
Faz uns três ou quatro dias que o caminho tá tranquilo, sem subidas ou descidas significativas. Passei por Catuã e cheguei em Lagoa perto do meio dia. Parei na Igreja do Rosário, tirei os tênis e as meias pra deixar as bolhas no sol e fiquei decidindo se ficaria ali ou andaria um pouco mais. Certeza é que qual fosse a decisão comeria o Legítimo Rocambole. Entre uma garfada e outra decidi que iria fazer os 22 km até Prados. Ainda era cedo, e como o terreno era bom eu chegaria por volta das 5.
Logo de cara o caminho entra por uma plantação de eucaliptos. Mais que aflito, fiquei aliviado com a decisão de ter feito o trecho à tarde, com sol forte e dia claro. Fosse na manhã do dia seguinte, com a neblina que cobre essa região, eu teria arrependido perdidamente de ter dormido em Lagoa. Uma trilha fácil veio na sequência, com direito a pinguela e tudo mais. Agradável até o final da trilha. A partir daí, contrariando meu pensamento, foi subida e descida e subida e descida e não se esqueça meu filho: você está em Minas.
Cheguei em Prados quase às seis, ainda a tempo do carimbo. Depois de outro dia com mais de 50 km, amanhã é dia leve e de velhas conhecidas: Bichinhos, Tiradentes e São João. Depois BH, pra mais um fim de semana com família (fiquei mal acostumado…)
Dia 19 (17/06/2016) – Prados | Bichinho | Tiradentes | São João Del Rei
Distância do dia: 33,48 km. Distância total: 696,27 km.
Foi uma boa descoberta a pousada Mirante da Serra, em Prados. Bem na entrada da cidade, entre o último marco do caminho e o local de carimbo do passaporte, é tranquila, apesar de estar na esquina da rodovia que corta a cidade. Seu Armando, o dono, é dedicado ao novo empreendimento. “Trabalhei muitos anos como representante de frigobar e sei como é ruim ter que abaixar pra pegar alguma coisa. Por isso nos quartos coloquei logo uma geladeira”, avisa. E dá a dica de uma pizza boa no quarteirão. “Senão só tem coisa pra comer lá embaixo”.
Lá embaixo, descobri na manhã seguinte, é onde é a cidade. Desci a rodovia querendo achar a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de onde o caminho do dia começaria. Saí da pousada às 7:15. Esperei o café e estava contando de andar no meu ritmo usual pra chegar em São João Del Rei as 13h, onde iria almoçar com minha irmã. Só que o primeiro marco nunca chegava. Passei o centro, a igreja Matriz e nada. Andei por quase uma hora até pedir informação pela quinta vez pra dois senhores. “A Igreja é lá na frente. Só ir reto”. Já era quase nove da manhã quando cheguei na Igreja e comecei oficialmente a caminhada do dia.
Não esperava novidades até São João. E atrasado pro meu encontro taquei-lhe o pau. Nem precisei usar os bastões: ou o caminho era plano e de terra batida, sem cascalhos, ou era de pedra, o que faz o que à ponta do bastão agarre. Fui andando num ritmo rápido, passando batido por paisagens que já conhecia. Bichinho? Ok. Lá vem a tortura dos 10km de pedra até Tiradentes… Na chegada da cidade Dona Onofra, parada na porta de casa, me chama pra mostrar sua horta de ervas. “Olha, tem de tudo. Até mariachicão. Experimenta”.
Cheguei na cidade mais charmosa da Estrada Real e nem parei. Dei uma geral no Largo das Forras, vi que tudo continuava (felizmente) como antes e continuei. No meio do caminho pra São João lembrei do passaporte. Simplesmente esqueci de carimbar. Já era. Não iria voltar. A opção A seria minha irmã estar com a tarde vazia e me dar uma carona de volta e B pegar um mototáxi quando chegasse em São João. Segui em frente.
Totem que é considerado o Marco Zero da Estrada Real? Já conheço. Santa Cruz de Minas? Já tinha passado. Quando entrei em São João mandei uma mensagem pra minha irmã, dizendo que chegaria no horário combinado.
Encontrar pessoas desconhecidas e fazer amizades no caminho é ótimo. Mas nada supera rever um rosto conhecido. A emoção é gigante. Foi assim quando Alê me pegou em Glaura e agora de novo com Leninha em São João. Conversamos, almoçamos, e ela se prontificou a me levar de volta a Tiradentes pra pegar o carimbo. No retorno, passando pelos mesmos lugares que tinha caminhado horas antes, a sensação era estranha. Um deja-vu fresco, mas com ritmo alterado.
O sentimento foi mais forte – bem mais forte – quando entrei no ônibus da Viação Sandra que me levou de volta a BH pro final de semana. Passava por cidades que havia caminhado há uma semana e ia lembrando do padaria onde lanchei, do banco onde tirei dinheiro, da árvore que achei bonita, da casa charmosa, da igreja que fotografei, do trevo que tive que cruzar. Mas tudo passava rápido, nenhum detalhe se destacava. Não ouvia os sons nem sentia os cheiros nem via as coisas que tinha visto. Viajava na velocidade errada, tudo ia rápido demais. Do jeito que tinha visto antes era melhor, bem melhor.
Dia 20 (18/06/2016) – Zero
Dia 21 (19/06/2016) – Zero
Dia 22 (20/06/2016) – São João Del Rei a Capela do Saco
Distância do dia: 54,45 km (mais 700 m de balsa). Distância total: 750,72 km.
Ainda não era seis da manhã quando saí da casa de meus anfitriões, Eva e Hermes. Ontem, quando liguei pra ela pra avisar que iria chegar às 20:30 em São João del Rei e que ela poderia ir pensando num lugar pra gente jantar, Eva gentilmente me convidou pra ir pra sua casa. “Caldinho aqui em casa, vinho, pão e queijo, pode ser? E se aceitares um couch surfing, ainda temos um sofá em casa. Mas estamos no meio da bagunça. Vamos embora pra Lisboa dia 27”. Já fazia quase uma década que ela morava aqui. A recepção foi divina. Melhor que qualquer restaurante ou pousada que poderia ter encontrado. Quando disse que precisaria sair antes das seis, que meu dia seria longo, ela ainda deixou o café pronto pra ser coado.
Tomei duas xícaras, comi uma broa e o sol ainda ia demorar a sair quando cruzei a Ponte do Rosário em direção à Igreja de São José Operário. A rua estava mais cheia que eu esperava, com todo tipo de gente que costuma estar acordado nessa hora: padeiros, operários, lixeiros, caminhantes, estudantes, atletas. Gente vinha pro centro, eu seguia em direção contrária, tentando encontrar o primeiro marco. Quando achei o dia já estava claro, mas o sol ainda ia demorar pra aparecer. “Opa! Bom dia! Tentando achar esse marco já faz um tempo”, falei pro seu Vicente, que vinha pegando a trilha. Ia pro sítio, que fica no início do trecho. “Tá indo até Paraty? Outro dia encontrei dois caras aqui, já de idade. Estavam com uns bastões na mão e a mochilinha vazia, igual você. Pensei que estivessem indo escalar a serra. Aí no dia seguinte tive que ir no Caquende – eu tinha um sítio lá também, mas passei pro meu irmão. Quando estiver chegando você vai ver: Sítio Vô Dinho – e lá tava o pessoal. Era um grupo de uns 18. O mais novo tinha uns 65 anos. Mas tinha gente com mais de 80. Eles tudo indo pra Paraty. Agora aqui não tem erro não: é só ir seguindo em frente”.
Os primeiros quilômetros do trecho até São Sebastião da Vitória eram de trilha e eu tinha me preparado para três riachos que teria que cruzar. O plano era tirar o sapato, cruzar descalço, secar o pé e continuar. Repita três vezes. Mas o primeiro era mais um poço de lama que um riacho. E por sorte alguém tinha colocado uns troncos. Cheio de confiança, apoie os bastões no barro e comecei com o pé direito no tronco. Desequilibrei, o pé esquerdo entrou na lama até a canela, o calcanhar direito também. Maravilha. Ainda não eram sete da manhã e já estava com os pés molhados. E nada do sol.
Deixei assim. Mais meia hora cruzo o local de nascimento da Nhá Chica, uma beata em processo de canonização, e sigo rumo ao povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. Antes, o segundo riacho. Um grosso bambu fazia às vezes de pinguela. “Esse não tem problema”. Fui, apoiei o pé direito, escorreguei de novo e meti o pé na água. O esquerdo não molhou dessa vez, mas ainda não tinha secado do primeiro vacilo. No povoado sentei, tirei as meias, dei uma torcida e continuei.
Quando o terceiro riacho apareceu o sol já tinha aparecido e secado meus pés. Aí não tive dúvidas: botei o plano em prática, cruzei sem os tênis e calcei de novo do outro lado, sob o olhar curioso de um cavalo que procurava caminho pra beber água.
Antes do meio dia estava devorando dois cafés, uma broa de milho, uma caçarola, uma coca-cola e um pão de queijo com pernil em São Sebastião da Vitória. Metade do caminho vencido, agora era só chegar em Caquende antes das cinco para a balsa. É que a cidadezinha está na margem norte da represa de Camargos. Ali não tem pousada nem restaurante, só em Capela do Saco, na margem sul. Quando liguei a informação foi que a balsa que faz a travessia só ia até às cinco.
Cheguei às 4:35 e a balsa tinha acabado de sair. Um morador ainda se propôs a buzinar pra balsa voltar e me pegar, mas pedi pra deixar pra lá. “Pode deixar: prefiro atravessar vendo o sol se por daqui a pouco e enquanto isso ficar aqui papeando com esses pescadores”. Era isso que eu queria ter dito. Mas na verdade eu falei “desde que ela volte, pra mim tá beleza. Não tô com pressa”.
Um dos pescadores era o Zé Pretinho. Parou de pescar (“hoje não tá pegando nada”), puxou o banquinho pro meu lado e puxou conversa. “Já passei um tempo em BH, no Barreiro. Meu tio morava lá e fiquei uns 30 dias com ele. Mas eu dia 22 anos. Hoje tenho 75. Naquela época eu queria era pegar a trilha, conhecer o mundo. Morei em São Paulo, trabalhei na construção da ponte Rio-Niterói por mais de dois anos. Morei em Roraima, no Acre, no Rio Grande do Sul, no Pará… Naquela época se aparecia um emprego num lugar diferente eu pedia as contas onde eu estava e ia. Aí casei, minha mulher também é de Santos Dumont. A gente ainda tentou morar em São Paulo, mas já tinha 3 filhos, indo pro quarto, daí comprei um terreno na minha terra e por lá fiquei”.
Quando a balsa voltou já era 17h30. Cruzou o lago enquanto eu via o sol se por, do jeito que tinha planejado. Valeu a pena o esforço e os mais de 50km do dia.
Dia 23 (21/06/2016) – Capela do Saco a Carrancas
Distância do dia: 29,17 km. Distância total: 779,89 km
Enquanto esperava a janta ontem perguntei pra Kátia porque o nome da cidade era Capela do Saco. Pra jantar ela tinha me dado duas opções: um pf por R$13, ou uma versão mais caprichada por R$25. A princípio fiquei com o peefão, mas a fome falou mais alto. Gritei o nome dela do segundo andar – a pousada não tem telefone – e pedi a versão completa. Exagerei. Deixei mais da metade do arroz e do feijão, mas comi todo o frango e a couve. Fui dormir mais que satisfeito e marquei o café pra 7:30.
A resposta dela pra minha pergunta foi um “Ah, sei não. Eu tô aqui só um ano”. E quando saí pela manhã, Kátia foi comigo até a porta. “Se você cansar tem um ônibus que sai daqui às 10h. Só fazer sinal que ele para”. Na porta da pousada, ao lado da igreja, o primeiro marco do percurso. Li as informações e falei calmamente: “aqui, Kátia. Chama Capela do Saco porque antes tinha uma fazenda e nela uma capela pra Nossa Senhora do Porto dos Sacos”. Mas o que eu queria mesmo falar era “olha, um ano é tempo demais pra você saber a resposta de uma pergunta que, eu aposto, todo mundo quer saber. E a resposta está aqui na sua frente o tempo todo. E é por isso que você quer passar a pousada pra frente. Se você se interessasse mais pelas coisas locais e mostrasse isso pros seus clientes talvez a coisa estivesse melhor”. Mas não disse, porque eu não tinha nada a ver com isso. Ao invés disso agradeci a dica do ônibus (não iria pegar um ônibus nem se fosse atacado por uma alcateia de lobos-guará) e segui meu caminho.
A primeira metade dos 30km até Carrancas são monótonos. A paisagem não é lá grandes coisas e a estrada é plana e parada. Por mim passou só um escolar, primeiro vindo, depois indo, e um senhor numa Strada. Parou do meu lado e ofereceu carona. Quando agradeci e disse que iria andando ele soltou um “é bom fazer uma caminhada quando se tem saúde né?”, enquanto acelerava a picape. Passei por dois homens colhendo milho manualmente, outros dois usando uma colheitadeira, e um outro checando a plantação de café. “Esse já tá quase na hora de colher, né? É catuí amarelo?”, pergunto. Ele confirma, não dá papo, e eu sigo.
A coisa começa a mudar só na metade final. Primeiro com a Serra de Carranca e outras no horizonte. Depois o terreno e a vegetação ficam mais secos. Nada de plantações ou Mata Atlântica: o que domina é o cerrado e pedras no chão. Começo a cruzar a Cruz das Almas e o som é de água correndo o tempo todo. Pequenos cursos d’água seguem a estrada dos dois lados, às vezes passando por baixo dela. Lá ao longe da ainda pra ver a represa de Camargos.
Quando vejo Carrancas ao longe, já passa do meio dia. A cidade é maior que eu imaginava. Meio sem charme, mas o bom do lugar é no entorno, que não vou conseguir explorar. Tento o carimbo do passaporte na Eco Adventure. Fechado. Centro de Informação ao Turista? Fechado. Na Pousada Roda Viva consigo o carimbo e aproveito pra checar a diária. R$80. Caro. R$70. Ainda caro, vou procurar outra. Fechada. Os donos foram pra uma vigília em Aparecida. Hotel? Fechado, hoje é dia de limpeza. Termino ficando na dona Margareth, que por R$40 me consegue um quarto com o banheiro bem na frente. Gasto a diferença das diárias em cervejas artesanais no bar local enquanto escrevo o blog.
Dia 24 (22/06/2016) – Carrancas a Traituba
Distância do dia: 36,69 km. Distância total: 816,58 km.
A primeira pessoa que encontrei quando cheguei a Carrancas foi o Magrão. Ele vinha descendo a rua cantando um funk, vestindo uma camisa da Seleção, trazendo na mão um garrafa de refrigerante com cachaça dentro e dois cigarros de palha. “Rapaz, você é a cara do Saulo!”, ele me disse quando me viu. Conversou, contou que era churrasqueiro em Lavras (“você tem que ir lá! É meu convidado!”) e disse estava vindo do bar da Ana, onde tinha pegado a pinga fiado. “É boa! Experimenta!” Não fiz desfeita e tomei um gole. E foi assim minha entrada em Carrancas: tomando cachaça.
Na manhã seguinte, o sino da igreja batia sete quando saí da padaria onde tomei um café – dois, tomei dois cafés – e comi um pão na chapa. Saí seguindo os marcos da Estrada Real, que coincidiam com as placas para o Complexo da Zilda. Nesse trecho o CRER segue outro caminho, passando por Estação de Carrancas. Eu ia seguindo a Estrada Real: trecho tranquilo, sem surpresas, nada de memorável. Quando o caminho da ER e do Complexo de Zilda se separam, a uns 12 km da cidade, relutei entre continuar no caminho ou visitar o Complexo. Decidi andar uns 5 km a mais e ver de perto as cachoeiras e pinturas rupestres do local.
Decisão errada. O caminho não é tão fácil – subidas, descidas, curvas, pedras – e a partir do complexo (um conjunto de meia dúzia de casas e uns dois restaurantes) é mais um tempo até as cachoeiras. Me contive com a mais fácil – a do Índio – e as pinturas perto. Deixei de ver pelo menos mais cinco cachoeiras perto. Mas tinha tempo curto e pensava na volta, além dos outros 15 km até Traituba.
A partir da metade do caminho uma dor na canela direita começou a me incomodar. Passei pomada e nada. Andei um pouco mais e lasquei um Salompas no local da dor. Nada de alívio. Continuei andando miudinho, passos curtos, tomando mais tempo que o normal, parando mais que o usual. Tomei toda água que tinha antes da chegada, me cansei mais que costume.
Custei a achar a casa do Roberto, meu pouso do dia. Ela fica ao lado da estação de trem de Traituba, que já não funciona há alguns anos. Os trens ainda passam, levando minério ao porto. Quando cheguei Roberto me esperava na porta. A casa é uma fazenda antiga, que já foi pousada no passado. Hoje guarda pouco daqueles tempos. Decadente, tem forro furado na sala, e forro algum em outros cômodos. As paredes estão rachadas, o piso afundando, os móveis quebrados. Mas Roberto mantém o clima alto com boa conversa e atenção. Enche o tanquinho para que eu posso lavar algumas roupas (“o sabão é minha irmã que faz”) e me mostra o caminho pro pé da laranja mais doce (“pode ir direto, lá perto do chiqueiro”).
Enquanto ponho as roupas pra secar chegam mais dois hóspedes. Paulo e Adilson estão fazendo a Estrada de bicicleta e estão no meu encalço desde Casa Grande, dizem. Dividimos casos de viagem, umas doses da cachaça que o próprio Roberto faz, uma garrafa de vinho que os ciclistas trouxeram e a janta: frango caipira, arroz, feijão, angu e salada.
Amanhã o dia é longo (mais de 40 km) mas por mais que eu goste de longos trechos confesso que a canela me preocupe. Se a coisa ficar pior vou ter que ficar aqui, tomando a cachaça do Roberto ou a da Ana com o Magrão.
Dia 25 (23/06/2016) – Traituba a Cruzília
Distância do dia: 45,21 km. Distância total: 861,79 km.
Quando o Paulo e o Adilson passaram por mim eu já tinha andado 15 km. Fizemos fotos (na verdade eles fizeram), gravamos vídeos, batemos um pouco mais de papo e o Paulo descreveu bem a experiência na casa do Roberto. “É o lugar mais sujo que eu já fiquei na vida”. E olha que os dois são aventureiros experientes, com anos de viagens, passeios, corridas, ultramaratonas, escaladas a dois dos sete cumes, e já ficaram em todo tipo de lugar. “Cara, você viu o teto? Aquele tanto de roupa suja dependurada, parece que nunca lava… A panela que ele fez o frango ele disse que deve ter 100 anos. Adilson disse que só que ele não a lava tem 50!”. Adilson completa: “fui lavar um copo pra tomar a cachaça e quando passei a bucha ele ficou mais sujo que antes”. Mas foi Paulo quem teve o insight: “esse cara teve alguma grande decepção na vida. Profissional ou amorosa. Ele é estudado, culto, e simplesmente deixou tudo pra lá”.
Eu tinha saído bem antes deles, às sete. E logo depois que eles passaram chegou a chuva. Durou pouco, mas uma garoa permaneceu chata durante boa parte da manhã. E junto com a chuva voltou a dor na canela direita. Ontem notei um inchaço, um ovo. E pela manhã passei pomada, mais Salompas, enfaixei, mas a dor continuava. Andava lento, demorado, sofrido. A dor só passou depois que tomei um Cataflan e uma vitamina I (Ibuprofeno).
O trecho é todo decorado por fazendas centenárias: Favacho, Brinco de Ouro, Narciso, Tapera. Mas a estrela do percurso é mesmo a Traituba: a fazenda é cheia de histórias, a mais famosa dela envolvendo D. Pedro I. Contam que fascinado pela fauna local, D. Pedro marcou uma caçada pela região com a corte. Por isso a família Junqueira mandou construir a fazenda, em 1827. Mas D. Pedro nunca apareceu. Seu Roberto diz que não foi bem assim: que a fazenda já existia e só um quarto foi preparado. Historiadores ainda discutem se o imperador se hospedou ou não na região. Mas a fazenda lá está, tem um quarto reservado para D. Pedro e sua construção a toque de caixa e preço de ouro deve ter deixado os escravos ainda mais descontentes que o usual: alguns anos depois aconteceu ali a Revolta de Carrancas, uma das principais rebeliões de escravos da nossa história. Recentemente a família vendeu o imóvel e na região o povo jura que os donos são Daniel Dantas e Lulinha (que junta a Traituba à Fazenda Fortaleza, em Valparaiso, São Paulo, que também colocaram na sua conta).
Na planilha do IER o trecho, que vai da fazenda à Cruzília, tem 37 km. Como saí antes, da casa do Roberto, ao lado da estação de trem inoperante de Traituba, marquei 45 km de percurso. Cheguei à Cruzília quase às cinco, andando pesadamente. Mas fui bem recebido: primeiro com o melhor pão com queijo quente que já comi na vida, na loja de queijos na entrada da cidade. E depois na confortável Pousada Cruzília, que por um quarto limpo, TV a cabo, telefone, banheiro privado, chuveiro quente e barrinhas de chocolate me cobraram menos que o Roberto cobrou pelo quarto e pela janta.
Dia 26 (24/06/2016) – Cruzília a Caxambu
Distância do dia: 30,28 km. Distância total: 892,07 km.
É impressionante como caminhadas de longa distância conseguem te surpreender. Pode ser a Estrada Real, Santiago de Compostela, Caminho da Fé. Independente. O fato é que quando você já acha que viu de tudo, que o caminho já deu, que nada mais pode fazer diferença, lá vem o destino e cataplof!, toma desavisado, que a vida é desse jeito. Surpresas acontecem, o tempo todo, e isso é o que deixa tudo mais fascinante.
Pra você acompanhar os altos e baixos da rotina de se achar uma cama: primeiro foi Roberto, casa caindo aos pedaços, imunda, caminha de solteiro, colchão ruim. R$70 com a janta. Vale a experiência, foi divertido, ele é bacana e tal. Dia seguinte, Pousada Cruzília, o local mais confortável até agora (e eu incluo aí as duas noites com Alê em Santo Antônio do Leite e quiça minha própria cama). Camão king size, TV 40″, chuveiro quente e abundante, telefone no quarto, atendimento surpreendentemente simpático da Dani, café da manhã com pão, bolos, suco natural, iogurte, frutas… R$50. R$60 incluindo os 3 chocolates e a água do frigobar. Hoje, Pousada Filipenses. Quarto de 2×1 sem janela. Nada de café. Colchãozinho fuleiro, travesseiro idem. Quarenta pratas, só no dinheiro.
Cruzília, eu já disse, foi uma grata surpresa. Da loja de queijos na entrada da cidade – o que foi aquele queijo quente?? Alguém me explica??? – à Pousada (e eu antes estava em dúvida entre ela e o Hotel Central), ao jantar na Pizzaria do Lelinho. O Lelinho, deu pra sacar, é o cara também por trás da pousada, que fica acima do seu comedouro. Quando cheguei ele me cumprimentou, separou a mesa e sentou comigo. Me explicou um a um os pratos – é pizzaria, mas também tem jantar – com detalhes do tipo “esse aqui você não pede não. Esse também não: salmão você come em qualquer lugar”. Me serviu um chope da Ecobier na temperatura correta, com o colarinho no tamanho certo e uma picanha exatamente no ponto que pedi. Eu queria mudar pra Cruzília no dia seguinte.
Mas no dia seguinte eu já tinha compromisso. Esperei até as 7:00 pro café – depois de tudo que já tinha visto não iria perder por nada desse mundo – e segui rumo à Baependi. Lá ia eu achando tudo meio monótono, chato, quando passo pelo seu Célio tomando sol na porta de casa. “Esquentando um solzinho aí né?”, mexi com ele. “É! É bão né? Você não deve estar com frio… Indo pra Aparecida?”. Jogou a isca, eu fisguei. Já fui entrando pelo portão batendo papo, dando bom dia pra filha e a esposa. Ele contando que já andou muito por essas bandas todas, ia levando lenha no carro de boi, isso lá pelos anos 50, porque só com a dona Valteresa, que é sua segunda esposa, já está a 52 anos. E que quando jogava como meio de campo do Flamengo de Caxambu, ninguém passava por ele não. Mas agora não: “caí aqui no quintal e fudi esse joelho”, conta ele, levantando a perna esquerda da calça.
E só quando fui chegando mais perto de Baependi que me dei conta de como ela e Caxambu são coladas uma na outra. Não são nem seis quilômetros. Não tinha ouvido falar de Baependi até recentemente, quando meu cunhado batizou a filha lá, na Igreja de Nhá Chica. Como já tinha passado no lugar onde a beata nasceu, em Rio das Mortes, e lá era o lugar pra carimbar o passaporte, passei também na igreja dela, e na Matriz, que fica pertinho do bar Fecha Nunca, que tava fechado.
E segui pra Caxambu. Estradinha de terra, uma pedraiada danada, eu ia tranquilo, canela sem doer (tinha tomado Vitamina I antes de sair), até chegar no Parque das Águas e carimbar o passaporte de novo. E da entrada eu olhei pra dentro do parque e já achei aquilo bonito demais. Olhei o preço da entrada: cinco reais. “Isso é só um parque?”, perguntei desavisado. “É um parque, tem piscina, pedalinho, doze fontes de água mineral…” Para. Doze fontes de água mineral? Posso vir trazer minha garrafa e encher? E é Caxambu, né? A água Caxambu, ora bolas! A fábrica da água, se é que se pode falar assim… Achei a pousada, deixei as coisas, tomei um banho rápido e voltei, garrafas vazias na mão. Aí que fui notar o povo vendendo pets vazias na porta. E o povo carregando garrafas na rua. A onda é essa: paga cinco contos, leva 50 litros da melhor água mineral gasosa natural pra casa.
E o parque é lindo, e eu ia de fonte em fonte experimentando as águas, como se eu estivesse degustando vinhos em Bordeaux ou Mendoza. “Hum, muito terrosa. Alto nível de magnésio. Poderia ter um pouco menos gosto de ferrugem…” E ia passando de fonte em fonte, até achar duas que me agradavam (fiquei na Leopoldina e Viotti, se querem saber). E conversava com o pessoal que ia pegar água, cada um defendendo sua fonte predileta como se defende seu time do coração. Não fui na piscina (cara, uma piscina de água mineral! É muita ostentação!) nem no balneário (massagens, alguém?) mas amei o parque e a cidade. Mais uma pro roteiro de volta. E mais uma lembrança de que você não sabe nada dessa vida, meu amigo.
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Dia 27 (25/06/2016) – Caxambu a Pouso Alto
Distância do dia: 51,03 km. Distância total: 943,10 km.
Cheguei em Pouso Alto e terminei o dia tão cansado que o máximo que consegui foi comer um pão com linguiça e experimentar dois dos refrigerantes locais, o Guaranita e o Mantiqueira. São bons os danados. Deveria ter comido mais, mas o cansaço bateu, a vontade de comer sumiu e aposto que vou acordar a noite com fome…
O cansaço e a falta de vontade de comer são consequência da bagunça que o IER faz nas planilhas da Estrada Real. Veja: a planilha diz que de Caxambu a São Lourenço são 26,85 km. Nas marcações nos marcos é menos, já que quando você chega na periferia da cidade, no último marco, a distância até o ponto final – a Estação de Trem – é zero. Mas ainda faltam 3 quilômetros. E da estação de trem é preciso ir até ao Parques das Águas para o carimbo – mais uns dois. E depois seguir até a rodoviária, onde começa o próximo trecho, até Pouso Alto. Some mais uns 5, por baixo. Ou seja: são 10 km a mais no dia, que já somava 41. Terminei o dia andando mais de cinquenta quilômetros, o que só estava prevendo voltar a fazer no último dia, entre Cunha e Paraty.
O dia só não foi mais lesado (ok, autocorretor: eu queria escrever pesado mas lesado ficou bom também) porque o caminho a partir de Caxambu é tranquilo e cheio de retas. É tranquilo até a chegada a São Lourenço. Primeiro, quando você acha que está chegando – o asfalto e a linha do trem estão logo à frente – o caminho faz uma curva e sobe um ladeira sem sentido. Depois a confusão de chegar à Estação de Trem e sair da Rodoviária. Foi pouco antes da estação que encontrei com o Allan, também de BH. Fazendo a trilha de bicicleta, esperava um parceiro que tinha ficado pra trás. Conversamos as coisas de sempre de quem faz a estrada: vindo de onde, até onde, fazendo quantos quilômetros por dia, dormiu onde ontem… “No Roberto. Dormiu lá também? Cara, o que é aquilo! Passei mal o dia inteiro. Tive que ir no banheiro umas dez vezes…”, disse o Allan. Ou alguém divulga o telefone da dona Chiquinha ou o Roberto ainda vai mandar alguém pro hospital…
Não vi mais o Allan durante o dia: deixei recado pra ele no Centro de Informações ao Turista, onde ele poderia passar pra carimbar o passaporte, que eu estaria no Unique Café até uma da tarde, quando continuaria pra Pouso Alto. Era o único lugar que poderia parar na cidade: considerado uns dos melhores cafés do Brasil e uma loja/lanchonete conceito no centro da cidade, o Unique não me decepcionou. Fiquei ali uns 40 minutos, experimentando cafés e descansando. Quando saí, foi mais uma hora até a rodoviária.
São Lourenço era minha meta no início da Estrada. Pela minha previsão, só chegaria aqui lá pelo dia 30. Mas mesmo com os quatro dias sem caminhar acabei andando mais que o previsto. O jeito era continuar na estrada, ir até Pouso Alto e de lá continuar até Paraty.
No início do trecho de terra vi o Jean seguindo alguns metros à minha frente. Cabelo descolorido, tênis cano alto, camiseta de time basquete, mochila mas costas e laptop na mão esquerda, só consegui identificar que ele ouvia música saindo do computador quando cheguei do seu lado. “É Racionais que você tá ouvindo?”, perguntei. “É, aquele disco mais antigo. (Era o Nada Como Um Dia Após O Outro Dia, de 2002). Você também fuma um?”, me pergunta ele assim, na lata. E seguimos uma meia hora batendo papo, até o rio que separa São Lourenço de Pouso Alto. Foi ele quem me disse que dois caras de bicicleta – provavelmente Allan e seu amigo – haviam passado por ele pouco antes.
Quando cheguei à cidade fui procurar o Hotel SerraVerde, o único local aberto pra carimbar o passaporte (como hoje é sábado, o outro local credenciado, a Secretaria de Turismo, estava -claro – fechada). Perguntei o preço da diária: “Seiscentos e sessenta reais”, me disse a recepcionista. “Tenho certeza que o conforto é proporcional ao preço, mas está bem acima da minha verba de viagem. Na verdade, é mais do que tenho disponível pro resto da minha viagem inteira”, comentei.
Acabei vindo pra Pousada Estrada Real (que não está entre as indicadas pelo IER), negociando o valor da minha diária e pagando 1/11 do valor da outra. E pra jantar, a opção é sair do centro da cidade e ir até a rodovia, onde comi meu pão com linguiça na Casa da Linguiça. Mas alertei: já estou com fome, queria ir ali comer mais um, mas cadê coragem?
Dia 28 (26/06/2016) – Pouso Alto a Passa Quatro
Distância do dia: 33,33 km. Distância total: 976,43 km
Quase. O dia do quase. Eu quase me perdi. Quase fui a Itamonte. Quase não parei em Passa Quatro. Os 1000 km estão quase chegando. A divisa de MG e SP também. E em consequência a Estrada está quase no final. Quase.
Depois da noite de ontem eu tinha que esperar o café da manhã. Comi bem, estava com fome. Coloquei três bananas na mochila e me despedi da Ana, a dona da pousada. Já tinha descido a escada quando ela me gritou. “Aqui, tava esquecendo. Leva um milhinho pra você comer no caminho”. Agradeci, sem mencionar que milho não era bem o alimento ideal pra se levar, que eu já tinha pegado as bananas. Meti o saquinho com as espigas no bolso e saí cruzando a ponte em frente à pousada. Naturalmente subi o morro que leva ao hotel SerraVerde, imaginando que o caminho era ali. Por sorte subia um senhor empurrando a bicicleta. Ofereci uma espiga, puxei conversa e depois de passar a entrada do hotel ele me alerta que o caminho não era aquele. “Por aqui até chega, mas se você tá falando que vai passar por São Sebastião e Capivari o caminho é outro. Tem que voltar e pegar o asfalto”. Só aí me dei conta que não tinha nenhum marco do CRER na encruzilhada (do IER eu já desisti de procurar dentro das cidades). Voltei e só aí notei o marco que tinha deixado passar bem no meio da praça.
Estava frio – em torno de 10 graus – e o rio que corta Pouso Alto deixava tudo em meio a névoas. Até São Sebastião do Rio Verde era asfalto, pouco trânsito e cheguei lá bem quando o sino chamava pra missa das oito. Logo depois peguei a estrada de terra pra Capivari. Tempo ainda encoberto, ótimo pra caminhada. Cheguei lá e tive que tomar uma decisão: à esquerda voltaria e pegaria a estrada rumo a Itamonte, pra depois descer e chegar a Itanhandu. A direita iria pelo asfalto direto a Itanhandu, uma economia de 30km e um dia a menos de caminhada. Peguei à direita.
Itamonte ficou de fora do meu roteiro, mas como já não estou fazendo nenhum dos roteiros da Estrada Real completo não me arrependo (mais tarde até fiquei feliz em não fazer o trecho, já te conto). Em Itanhandu carimbei meu passaporte e segui pra Pé da Serra e Passa Quatro.
Os 12 km desse trecho são praticamente uma reta que segue o que restou da linha de trem e vai paralela à estrada. O guia da Estrada Real diz que “a paisagem tem como chamativo as inúmeras granjas de grande porte”, como se isso fosse um atrativo. Não se engane: é um alerta. O trecho chega a ser deprimente, com dezenas de galpões, cada um com centenas (milhares?) de galinhas confinadas, botando ovo após ovo. O cheiro é de titica. A cena te faz querer virar vegetariano.
Cheguei a Passa Quatro uma da tarde e tinha outra decisão pela frente: ficar ou seguir? O problema, que eu já tinha identificado quando programei a caminhada, é que a partir daqui as opções de hospedagem são mais raras. Depois de Passa Quatro poderia ficar em uma pousada a 20km dali. Chequei o preço: 250 reais. Nope. Fui carimbar o passaporte na São Rafael: 135. Nope. Tentei a Eco, ninguém atendeu. Olhei o hotel da cidade, que todo mundo diz que é péssimo. 100. Procurei outras pousadas, ali ou mais pra frente, no bairro de Pinheirinhos. Tudo caro. E aí já era quase três da tarde, e eu sem decidir o que fazer e pra onde ir. Já não daria pra ir pra nenhum lugar. Acabei voltando pra São Rafael.
Estou eu indo pro hotel escuto alguém chamando: “Jefferson!”. Espera: eu? Aqui? Olho pra trás e tá lá o Adilson, que conheci na casa do Roberto. Ele chegou faz tempo, mas foi subir a serra e tinha acabado de voltar. Ótimo revê-lo, despedimos e tinha certeza que não o veria mais.
Quarto ótimo. Banho bom. Tudo ok. Hora de comer. Quatro da tarde. O que tem aberto? Nada, claro. A não ser um café perto da Pousada, onde poderia pelo menos comer um salgado. Entro pra pedir e quem eu encontro? Adilson. Tinha só passado pra comprar uma água, mas paramos pra falar um pouco dos últimos dias de cada um. E ele me conta que a ida pra Itamonte foi pesada, e que ficava pensando em mim fazendo o trajeto. Que a cidade não tem nada de mais, que o visual é bonito mas nada que a gente já não tenha visto e que fui feliz na escolha de deixar Itamonte de lado.
A empada, os cafés e o croq monsieur ajudaram na fome, mas precisava de mais. E a cervejaria Napoleão já estava aberta às cinco. Fui pra lá querendo algo com mais sustança. Sanduíche e cerveja, ótimo. Mas o problema é que o lugar também reúne os fãs de futebol, que discutiam os resultados do domingo. E como trilha sonora para as discussões as caixas de som do lugar tocavam Engenheiros do Hawai, que se misturam ao som dos cantos religiosos que saiam dos altos falantes da igreja em frente. O caos.
Mas comi, não vou dormir com fome, mas vou dormir mais pobre. Passa Quatro é cidade de fim de semana de paulistanos, e segue os preços de lá. Ao final do dia gastei quatro vezes mais do que vinha gastando em Minas. E ainda nem cruzei a divisa.
Dia 29 (27/06/2016) – Passa Quatro a Embaú
Distância do dia: 41,76 km. Distância total: 1.018,19 km.
Desde o início do meu planejamento pra Estrada Real que eu estava preocupado com esses últimos dias. Primeiro porque não sabia se iria conseguir chegar aqui. Por que tinha 32 dias livres, e com esse tempo eu achava que chegaria em São Lourenço ou, com sorte, em Passa Quatro, quase na divisa. E também porque a partir da entrada em São Paulo a logística parecia mais complicada. Os trechos eram maiores (por volta de 40km, alguns com mais de 50km) e as opções de hospedagem e alimentação eram mais raras. À chegada em Vila do Embaú, por exemplo, já deixava isso claro. Na planilha a informação era que não existiam pousadas ou hotéis na região. Isso depois de um trecho de 33 km.
Saí de Passa Quatro quando o relógio da Matriz tocava 7:30. Saí seguindo a linha de trem, e foi assim durante boa parte da manhã. Até chegar no asfalto e encontrar a marca da divisa entre Minas e São Paulo. Primeiro milestone do dia. A vista daquele ponto é sensacional.
Atravesso a pista e entro na trilha da Garganta do Embaú, ponto mais baixo encontrado pelos bandeirantes pra cruzar a Serra da Mantiqueira. Pelo menos desde 1596, quando por ali passou João Pereira de Sousa Botafogo. Fernão Dias também, quase cem anos depois. De novo, a vista de tirar o fôlego. O lugar é cheio de história: ali também tem o túnel de trem da época de D. Pedro II, ponto estratégico durante a revolução de 32.
Quando volto ao asfalto, já no estado paulista, entro na região da Vila do Embaú, distrito de Cruzeiro. Tem a Serra da Mantiqueira como fundo e parece que o caminho só passa por ali pelo visual. É em algum lugar na Vila que cruzo o segundo milestone do dia: os 1.000 km andados desde o início da Estrada Real.
Quando cheguei ao ponto final da planilha, a sub-prefeitura de Embaú, tinha como opção pegar um transporte até a cidade mais próxima (Cachoeira Paulista) ou seguir andando. Foi o que fiz. Ainda no segundo Marco fiquei em dúvida quando ao caminho, que seguia em direção a uma cerca. Pedi informação pro João Paulo, que mora ali. “É esse mesmo. O pessoal fica em dúvida, mas é isso. Tem outros desse cheio aí pra trás ou esse é o único?”. Expliquei que sim, tinham outras trilhas, mas que sempre que tinha uma cerca eu ficava em dúvida. E ficamos batendo papo e contei da falta de pousada e que iria andar até encontrar uma. “Olha, depois da trilha, logo que você pegar o asfalto, você vai passar Furnas, aí tem um condomínio do lado direito e logo depois uma pousada do seu lado esquerdo. Chama Pousada Rural. Pode procurar a Adélia”. Mas que notícia boa! Poderia até andar mais, mas uma pousadinha aí caiu como uma luva.
Adélia também tem uma lanchonete e restaurante no lugar, mas como hoje é segunda, ela não abriu. Ainda não sei o que vou jantar essa noite. E amanhã o dia vai ser longo de novo: pelo menos mais 35km até Guaratinguetá. E a partir daí são 50 até Cunha e 57 até Paraty. E pronto. Menos de 150 km e acabo a jornada.
Dia 30 (28/06/2016) – Embaú a Guaratinguetá
Distância do dia: 38,17 km. Distância total: 1.056,36 km.
Dona Adracir talvez seja a pessoa mais simpática e cativante que eu tenha encontrado na viagem até agora. Ela chegou quando eu começava a jantar (um prato enorme de arroz com feijão, um bife, um ovo frito, uma salada de alface e tomate que segunda a Adélia “um lugar iria entregar”). Ela é pequena, olhar firme, sorriso no rosto, cabelo branco cortado curto, o rosto cheio de rugas, mas a energia é tanta que ela não aparenta ter os 80 anos que tem. Chegou por trás, vindo de dentro da casa e pegou no meu braço esquerdo. Pediu desculpas por não estar na hora que cheguei, conversou mais algumas coisas e saiu. Já já volta ela com uma vasilhinha na mão. “Experimenta. É abóbora, aqui da fazenda mesmo”. Falou mais um pouco e saiu. E volta ela com um pé de alface na mão. “Olha que beleza. Daqui também”. Dona Adracir não sentava: ficava de pé do meu lado, segurando meu braço. Perguntou que horas eu ia sair e entrou pra dentro da casa.
Hoje de manhã acordei com ela batendo na minha porta. “Seis horas!”. Levantei, me arrumei e desci. O café já tava na mesa. “O problema aqui é o pão. Padeiro aqui não acorda cedo. Então eu esquentei o pão de ontem, tem pão de forma que você pode colocar na misteira e a Adélia fez esse bolo ontem. E tem queijo, que a gente faz aqui também”. Servi um café, começava a tomar e a comer um pão e ela volta. “Olha esse livro. É a história da minha família. Um rapaz que era filho de um empregado da minha avó que escreveu. Ela quando morreu deixou tudo arrumado. Um pedaço de terra pra cada empregado, pagou os estudos desse menino. Hoje ele é presidente do Centro Cultural de Cachoeira Paulista”, diz ela orgulhosa. O livro é da família Godói Fleming, e dona Adracir diz que boa parte das terras de Embaú a Cachoeira Paulista era deles.
Ela continuava de pé, contando histórias, eu encantado. Disse que a pousada existe há pouco tempo, mas que ali antes tinha uma peixaria. “Minha irmã que geria o negócio. Ela faleceu tem cinco anos, mas ainda continua na casa”, diz ela mostrando as fotos na parede. “Aquela ali não: aquela sou eu com quinze anos”. Com a morte da irmã, resolveu montar a pousada, incentivada pela turismo religioso de Cachoeira Paulista, sede da Canção Nova, comunidade ligada à Renovação Carismática Cristã. “O problema de turismo é que fica tudo muito caro. Aqui a gente consegue fazer um preço melhor”.
A pousada fica em parte do terreno da fazenda dela, onde já criaram bicho de seda (“tinha num sei quantos alqueires de amoreira”). Hoje se dedicam ao leite. Mas Dona Adracir também já deu rumo pros seus pertences. “Já resolvi tudo. Fiz meu testamento e deixei as coisas pro meu povo. A fazenda ficou pra um menino que eu criei. Daqui a pouco ele passa aqui, trabalha entregando leite. A Adélia trabalha comigo há vinte anos. Já dei um terreno e uma casinha pra ela. Daqui a pouco ela chega e vai pra lá plantar. Uma moça que cuidou da minha irmã quando ela tava doente eu dei um lugar aqui também. Ela que planta aquela alface que você viu ontem. Agora tem uma família mudando aqui pro lado. Deixei eles ficarem aqui um tempo. Gente boa, você precisa ver”.
E ela em pé… “Senta Dona Adracir”. “Eu não sinto que tenho 80 anos, mas a idade chega né? Como tudo na vida é Deus que manda pra gente e a gente tem que aceitar. A vista já não está tão boa, eu já não escuto bem… Mas eu esqueço. De vez em quando subo na escada pra arrumar alguma coisa e vem a Adélia: desce da escada Dona Adracir! Porque o povo não sabe aproveitar as coisas né? Estraga quer jogar fora. Essa cadeira aí tem mais de anos. Essa porta também. Tudo de brechó. Eu adoro brechó. Essa imagem de Cristo tava lá no chão, o povo pisando, toda quebrada, eu queria comprar e eles me deram. Mandei arrumar e olha aí que beleza. Aquela nossa Senhora lá fora também, mesma coisa”.
Quando perguntei a origem do seu nome, ela diz que quando nasceu o pai queria um menino. “Homem prefere ter filho menino né? Mas meu pai era sensível. Foi lá pro terreiro onde secavam café, ficou lá sentado e escreveu esse verso:
Após longa caminhada
Já tirei meu guarda-pó
Mocinha bem educada
Trago o nome da Vovó.
Ricarda se chama ela,
Adracir me chamo eu.
Meu nome é uma charada
Igual a do Zé Bedeu”
Quando saí dei um abraço gostoso e deixei claro o quanto aquela conversa tinha sido agradável e o quanto ela havia me inspirado. Às sete estava de volta às Estrada.
O percurso? Plano, sem nada que chamasse atenção. Ou asfalto, muitas vezes sem acostamento, ou terra, quase sempre com cascalhos e pedras. E sempre com trânsito: caminhões e carros levantando poeira. Na chegada à Guará, uma subidinha longa, no asfalto. Mas o que valeu mesmo o dia foi a conversa com dona Adracir.
Dia 31 (29/06/2016) – Guaratinguetá a Cunha
Distância do dia: 54,59 km. Distância total: 1.110, 95 km.
O hotel Frei Galvão, em Guaratinguetá, tinha tudo pra ser um sucesso. Está em um ponto excelente – em frente a catedral, que dá pra ser vista da janela do quarto – e tem quartos relativamente espaçosos. O preço também é bom: $60 é a média do que venho pagando, às vezes menos, poucas vezes mais. Mas apesar disso o pobre hotel não vê uma reforma há anos. As paredes estão sujas, as portas carcomidas, o banheiro mal cuidado. Mas ainda assim – pela localização, pelo preço – escolhi ficar ali. Apesar do refeitório não ser grande, esperava um café da manhã decente. Conversei com o Paulo, o recepcionista (talvez dono) e ele havia dito que o café era servido a partir das 6h. “Até um pouco antes, se você precisar”. Eu precisava. O dia seria longo e as seis eu queria estar no caminho. Combinamos 5:45.
Acordei 4:30 com cheiro de pão quente. Não mencionei que a Frei Galvão é em cima de uma padaria, o que garantia, pensava eu, o pão logo cedo. Me preparei e as 5:45 como combinado estava no refeitório (que era do lado do meu quarto). Luzes apagadas, nada posto. Não dava pra eu esperar. Desci as escadas e quando tirava o cabo de vassoura que fechava a porta ouço um grunhido vindo da recepção. A responsável pelo café dormia na cadeira e acordou com meu barulho. “Perdeu a hora do café, né?”, eu disse, mais pra constatar que provocar. “Perdi mesmo. Mas faço rapidinho”. Agradeci e saí de estômago vazio pra mais de 50 km de caminhada.
Eu estava prevendo que isso poderia acontecer. No dia anterior passei no supermercado e comprei mais algumas barrinhas de cereal, dois pacotes de biscoito, uma barra de chocolate e uma garrafa pequena de vinho. O vinho bebi à noite no quarto, comendo um hambúrguer horroroso comprado na esquina. O resto das compras fui consumindo durante a manhã. Cinco barras de cereal, um pacote de biscoito, meia barra de chocolate, antes que derreta toda…
O trecho de Guará a Cunha é chato. Muito asfalto, pouca paisagem. É como aquele episódio insosso antes do gran finale. Esperava mais subidas – tem algumas, mas não tão fortes. A parte no asfalto é aquilo de sempre: ruído, barulho, atenção no talo, sinalização pros motoristas dizendo “olha eu aqui”. Depois de 10km de subida leva a planilha dizia que tinha uma subida mais forte, até o km 20, em estrada de terra. Meu plano era superar esse trecho antes do sol sair “de verdade”, o que tem acontecido lá pelas dez. Era 9:40 quando voltei pro asfalto. A partir daí seriam mais umas 4 horas de mais ruído, mais carros. Com um diferencial: o sol começava a ficar quente, o que piorava as coisas.
Voltei pra terra quando as placas marcavam “Cunha: 10km”. Na planilha seriam mais catorze. Entrei à esquerda e mais subida, mais descida, mais cascalho, mais cachorro…. Mas nada de ruídos, barulhos ou carros – exceto alguns fusquinhas que passaram por mim.
Cheguei a Cunha bem: antes das 4 da tarde, como previsto, fazendo uma média de 5 km por hora. Peguei informações sobre o próximo trecho, carimbei meu passaporte e consegui uma pousada que a dona garantiu que meu café estará servido às 5h, quando pretendo sair.
O trecho final, até Paraty, é o mais longo da Estrada Real. São 57 km, uns 35 de subida braba da serra, o resto de descida até o mar. Existem várias opções de hospedagem no caminho. E muita gente divide o percurso em dois: um dia de subida, outro dia só descendo. Resolvi encarar tudo numa tacada só: 57 km de caminhada amanhã. O gran finale. O episódio duplo de encerramento da temporada Vamos lá. Chegar em Paraty muito antes do esperado.
Dia 32 (30/06/2016) – Cunha a Paraty
Distância do dia: 61,50 km. Distância final: 1.172,45 km
S
Se essa caminhada fosse mesmo uma série de TV, como venho brincando, esse último dia seria aqueles season finale com o dobro de duração, com direito a flashback, novos personagens, choro e mudanças surpreendentes no final.
O dia começou cedo. Quando acordei, às 4:30, já vi a luz da cozinha acessa. Cida tinha cumprido a promessa e acordado antes de mim pro café. Subi e ela já tava na porta, com a mesa posta. “Dormiu bem, Jef-fer-son?” Ela fala o meu nome pausadamente, destacando bem as sílabas. Eu tinha dormido super bem. A pousada do Sossego é realmente o que o nome sugere. “Olha, Jef-fer-son, aqui tem pão. Pode comer. E queijo de Cunha. É muito bom. O café é torrado em casa, viu? Infelizmente não tenho banana, mas tem maçãs e laranja serra d’água. E esse bolo é ótimo pra você. Não tem nada de gordura. É cremoso mesmo. Gosta de suco de laranja? É natural. Foram sete laranjas. E nada de água, viu Jef-fer-son?” Eu ia comendo, ela me mostrando mais coisas, até que falei pra ela sentar pra gente conversar. Você é daqui mesmo? “Sim, sou nascida em Cunha. Fui professora de primeira a quarta série por 25 anos. Dez na zona rural, 15 na cidade. Antes fui empregada doméstica, mas estudei e me formei. Dormia acima de onde ficam os porcos na fazenda”. Casada? “Fui casada duas vezes, com dois homens com o mesmo nome, José Luis. Mas os dois morreram. Meu segundo marido morreu faz dois anos”. E toda vez que fala do segundo fala com saudade na voz. Do primeiro não: bebia muito e ficaram casados por seis anos. Com o segundo foram 30.
Ontem quando cheguei Cida estava com uma camiseta de Istambul. Perguntei se era por causa dos ataques. “Não, eu estive lá. Eu e meu segundo marido, que morreu há dois anos, viajamos muito. Fomos a vários países: Turquia, Portugal, Aracaju, Maceió…” E quando conta das viagens se alegra. Conta dos passeios de navio no Nordeste, de balão na Capadócia, de ser assaltada em Portugal. “Roubaram todo o meu dinheiro, até o que eu tinha no Brasil. Só não levaram meu passaporte. Levaram 3 mil euros, meu cartão, a senha… Tiraram até meu dinheiro de aposentadoria”. Mas depois que o segundo marido morreu Cida não viajou mais. Tento incentivar, falo pra tirar um final de semana e ir pra Minas, que é perto e ela não conhece.
Quando vejo já são 5:30, hora de despedir e pegar estrada. Quando entro na estrada de terra ainda é noite e fico pelo menos uma hora com a lanterna na cabeça. O caminho vai subindo devagar, passando por propriedades rurais, pousadas, fazendas, restaurantes, vilas, cachoeiras, até chegar de novo no asfalto. É um pouco de tudo que a gente vê durante toda a Estrada Real. E quando chega no asfalto, mais subida. Ao todo são 35 km serra acima, até a divisa com o estado do Rio.
É meio dia e o pessoal que terminava a colocação das placas na recém-pavimentada estrada Paraty-Cunha começava o horário de almoço. (Na verdade a Estrada ia ser inaugurada só no dia seguinte. Ainda faltavam muitos acertos, mas é ano de eleição, você sabe…) A partir da divisa tudo muda. A vegetação é esplendorosa: samambaias gigantes, orquídeas, bromélias, cipós. E é só descida. Vinte e dois quilômetros ladeira abaixo. Logo no início uma clareira na mata revela Paraty lá embaixo. É difícil segurar a emoção vendo a linha de chegada tão perto.
Faltando poucos quilômetros para a cidade paro em frente a um ateliê de cerâmica pra apreciar a vista mais uma vez. “Aqui é o nosso belvedere”, diz Jorge, o artista, tentando fazer sua voz soar mais alto que os dois gansos que passavam por ali. Sento pra tomar uma água e bater um papo e sou surpreendido por Acajá. Ela corre e se joga no meu colo. E aquela cadelinha branca de orelhas negras fica ali ganhando carinho no colo enquanto Jorge conta que é paulista, formado em artes na USP, professor, e que um dia, ainda nos anos 80, um aluno veio lhe dizer de uma chácara que estava à venda em Paraty. Ficou em dúvida, pegou conselho com uma amiga, e comprou. Mudou pra lá faz 15 anos, e hoje nem contato com os antigos clientes de São Paulo tem. Mas acha que a estrada nova pode trazer clientes paulistas para o negócio. “Hoje, por exemplo, estou aqui de plantão o dia inteiro e ainda não vendi nada. Acho que os cariocas, como tem a praia e um cenário lindo ao redor, não são tanto valor pra coisas de casa. Mas os moradores de nossas metrópoles cinzas não. Eles valorizam mais coisas como as que eu faço”. Ele fala num português correto, voz bem empossada e aparenta ter menos que os 60 anos que diz ter. Quando me despeço, ele agradece. “Obrigado. Quando voltar pra estes lados lembre-se de mim”.
A estrada desce, desce, e parece nunca chegar. Faz curvas, passa por diversas pousadas e restaurantes, um bairro e finalmente chego ao trevo de Parary. Mais alguns minutos e entro no Centro de Informações Turísticas. Ainda não são cinco da tarde. “Posso te ajudar?”, me pergunta a Juliana. “Agora não. Deixa cair a ficha primeiro”, respondo. Ela fica olhando sem entender, eu com lágrimas de emoção nos olhos, até que falo que quero o carimbo e o certificado. Conversamos, dei dicas, recebi informações, Laíse, que também trabalha lá, me pede uma foto e o endereço do blog e eu saio pra ver o último marco da Estrada Real.
Já são seis da tarde, está escuro e a cidade fervilhando por causa da Flip. Eu andando cansando pelas ruas de pedra, começo a ir pra pousada que o Allan havia reservado pra mim ontem, e começo a me imaginar ali, no meio daquela tanto de gente, tendo que enfrentar fila pra comer, andando com os pés doloridos naquelas ruas de pedra, quando dou meia volta e compro a primeira passagem pra fora dali. Daqui a algumas horas estou no Rio e amanhã cedo em BH. Pronto pra começar a preparar a próxima caminhada.
Perguntas e Respostas
Foram 32 dias de Estrada Real, quase 1200 quilômetros percorridos a pé. Muita gente fica curiosa com alguns detalhes de uma viagem como essa. Me perguntam como a coisa funciona na prática, o que se leva, o que se come, quanto se anda por dia, quanto custa, que horas sai, que horas chega, coisas assim. Vou tentar responder a algumas dessas perguntas nesse texto.
De modo geral, a Estrada Real é muito bem dotada de estrutura de hospedagem e alimentação. Minas Gerais é o estado brasileiro com o maior número de cidades, então dá pra se ter uma ideia. O que não quer dizer que as pousadas sejam boas, nem que você vai conseguir jantar todos os dias…
Fiquei em lugares decadentes e sujos como a casa do Roberto, em Traituba, e paguei R$70, por uma cama de solteiro e um banheiro compartilhado (ok, ele fez uma janta e me deixou chupar quantas laranjas eu quisesse). Em Cruzília, gastei R$50 no quarto mais confortável da viagem, com cama king size, chuveiro privado excelente, TV a cabo, travesseiros à escolha. Por mais R$30 eu teria hidromassagem. Em Morro do Pilar o quarto era simples, mas o café da manhã era excelente. E custou R$35, o mais barato da viagem. O mais caro que paguei foi em Passa Quatro: R$135, mas o conforto do lugar vale o preço. Poderia ter ficado no albergue, mas tava lotado. Em média os quartos custavam entre R$50 e R$60 por noite.
Alimentação em Passa Quatro também foi caro: duas cervejas e um Hamburger, R$68, sem 10%. A janta na Pousada Rural de Embaú, com arroz, feijão, carne, ovo, salada e purê de abóbora, saiu por R$12. Ficando no trivial, na janta, o preço era em torno de R$15.
Eu não almocei nenhum dia. Minha rotina era acordar meia hora antes do horário do café na pousada (meu limite era as 7h. Se a pousada começasse a servir café só as 8h, meu plano era a) convencer a servir mais cedo, b) negociar de deixar um café já preparado, com o que tivesse, pra eu tomar quando acordar e cair fora e c) pedir um desconto na diária. Quase sempre a) funcionava), comer bem no desjejum e só parar pra comer quando chegasse ao meu destino. Na mochila eu levava barrinhas de cereais, frutas secas e frutas que tivesse na pousada – quase sempre bananas e maçãs. Com isso – e três litros de água, em média – me sustentava até a janta.
Minha estratégia era começar a caminhar o mais cedo possível. Como clareava às 6:30 mas o sol só saía mesmo às 10h, esse horário era excelente. A partir das 10 já começava a ficar quente, depois das 11 já suava bicas. Parava lá pelas 3 ou 4 da tarde em um dia normal. Um dia extrapolei: quando fui do Serro a Tapera, quando poderia ter parado em Alvorada de Minas ou Itaponhacanga. Cheguei já noite. Outro dia saí ainda noite: no último, quando precisava andar os 60km de Cunha a Paraty. Em média andava o que me deixava satisfeito: entre 35 e 40km por dia (7 ou 8 horas, sem parar pra almoço). Meu objetivo era sair cedo e chegar cedo.
Na minha mochila eu levava o básico do básico. Quatro sacos, que eu chamava de roupas, primeiros socorros, tecnologia e comida.
O roupas é um saco estanque de 20 litros que ia com o seguinte:
- 1 camiseta extra de caminha
- 1 camiseta pra cidade
- 1 calça de compressão extra
- 1 par de meias extra de caminhada
- 1 par de meias soquete
- 1 calça de nylon pra cidade
- 1 calça quente pra dormir
- 1 segunda pele pra dormir
- 1 manga longa pra cidade
- 1 Mini toalha de alta absorção
Tudo leve, nada de algodão, tudo de secagem rápida.
O primeiro socorros era o mais pesado. Com os machucados no pé durante a caminhada foi ficando maior e no final tinha o seguinte:
- Kit óculos: porta-óculos, óculos, lente de contato, 100ml de soro pra lente
- Kit dental: escova, creme, fio
- Kit primeiros socorros: pomada anti-inflamatória, pomada pra alergia, pomada pra assadura, linha e agulha (pras bolhas), esparadrapo microporos, bandaid, gase, protetor labial (que nunca usei), Salompas
- Kit higiene: Mini sabonete, desodorante, papel higiênico, lenços umedecidos, protetor solar
- Kit comprimidos: ibuprofeno, Cataflan (só usei esses dois), tylenol, aspirina
- Kit unha inflamada (comprei quando a unha 5 caiu): algodão, água oxigenada, mertiolate
Cada kit desse ia em saco plástico e todos eles em uma sacola de tecido.
O tecnologia tinha:
- Dois adaptadores usb-tomada
- T
- Carregador extra celular
- Lanterna de cabeça
- Cabo iPhone
- Cabo mini-usb (carregador e lanterna)
- Mini tripé
- Fone de ouvido
Na sacola comida ia o que eu tivesse de comida naquele dia. E um par de tênis de iatismo da Tribord (um achado, pesa menos que um par de havaianas) era meu sapato pra cidade e ia numa sacola de supermercado.
Os três primeiros sacos iam dentro de um saco de lixo dentro da mochila, uma Quechua 40l. Assim, caso eu pegasse chuva, minhas coisas não molhariam. Na parte de cima da mochila ia o kit comida, o passaporte da estrada real (num saco plástico) e um capa de chuva barata (coisas que eu precisaria usar em emergência ou assim que chegasse na cidade, e que caso precisasse não teria que abrir a mochila toda). Num bolso na frente da mochila, na cintura, eu levava um canivete e duas ou três barrinhas de cereal. Dependurado na alça da mochila uma bandana multi-uso. Nas laterais, duas garrafas pet 1,5l de água. Só de água eram 3 quilos, mas a mochila toda, completa, não chegava a 9. O peso base, sem comida e água, era pouco menos de 5 quilos. Tudo muito enxuto. Andar leve é o segredo.
Eu usava tênis (um Asics Fuji), meia, calça que vira bermuda, calça curta de compressão, camiseta, camisa manga longa, corta vento, boné. Óculos de sol eu perdi em Entre Rios. Levava também dois bastões de caminhada, essenciais tanto em subidas quanto descidas. No bolso esquerdo da calça o celular. Numa pochete, dinheiro, cartões de crédito e débito e um iPod Mini, que usava pra marcar a distância percorrida.
Na chegada de cada cidade ia até o ponto final indicado na planilha, onde desligava a contagem da distância. A partir daí ia procurar local pra carimbar o passaporte e pousada (às vezes era no mesmo lugar). No local de estadia, um ritual: tirava tudo da mochila, conferia se estava tudo ok, tomava um banho quente e demorado, botava a roupa de cidade, descansava um pouco e ia procurar o que comer e conhecer a cidade. Voltava, atualizava o blog e normalmente já estava dormindo antes das nove.
Como a maioria das cidades é bem pequena, não tinha muito o que ver. A igreja (que em muitas era o ponto de chegada) e muitas vezes só. Mas acontece que em muitas dessas cidades as atrações mesmo estão no entorno, como as cachoeiras em Carrancas ou Milho Verde. Aí não dava pra visitar, mas ia anotando mentalmente os lugares que quero voltar (Diamantina, Milho Verde, Serro, Morro do Pilar, Circuito das Águas).
Dos 32 dias de Estrada Real, andei efetivamente 28. Tirei quatro dias “zero”, onde fiquei parado. Não andei os dias 12, 14, 19 e 20. Quando cheguei a Caeté, do lado de BH, passei a ir dormir em casa ao invés de procurar pousada. Era mais barato e mais confortável. Além de Caeté, fiz isso em Sabará e Rio Acima. Tirei um dia zero antes de voltar a Rio Acima e seguir a Glaura, onde Alê foi me encontrar e tirei o segundo zero. Depois voltei de São João Del Rei pra BH para um final de semana com a família. Nos 28 dias caminhados foram percorridos 1.172,45 quilômetros. O que dá uma média de uma maratona (quase 42km) por dia. Não conto aqui as caminhadas pra procurar pousada, restaurante, farmácia ou sinal no celular. Meu ritmo de caminhada é puxado e paro raramente. Nos dias que andei pouco, fiz quase 30 km (de Conceição do Mato Dentro a Morro do Pilar e de Capela do Saco a Carrancas). Vários foram os dias com mais de 50. O último, de Cunha a Paraty, bateu nos 60, doze horas de caminhada quase sem parar.
Mas tenho que confessar: eu não fiz a Estrada Real completa. Além do Caminho Novo (Ouro Preto a Petrópolis), ficaram faltando trechos em todos os caminhos que fiz. O Caminho dos Diamantes, por exemplo, sai de Diamantina e vai a Ouro Preto. A partir de Cocais segue para Barão de Cocais, Santa Bárbara, Catas Altas, Santa Rita Durão, Camargos e Mariana. Por causa do acidente em Bento Rodrigues, que ficava entre Santa Rita e Camargos, a estrada está bloqueada a partir de Santa Rita, o te obriga você a pegar um asfalto com grande número de caminhões e sem acostamento. Por causa disso optei por pegar o Caminho do Sabarabuçu, que começa em Cocais. No caminho do Sabarabuçu não andei o trecho final, de Glaura a Ouro Preto. E no Caminho Velho, o trecho inicial, que sai de Ouro Preto, passa por Glaura e vai a Santo Antônio do Leite, também foi omitido (fiz de carro com a Ale). Sem contar que saltei Itamonte. Se tivesse feito todos esses trechos seriam pelo menos mais 150 quilômetros. Mas não acho que tenham comprometido a caminhada e seu objetivo.
Treinamento de corpo e alma – Longa Distância
[…] 2016 Estrada Real […]
jocalopes
Que maravilha de viagem. Que excepcional caminhada! Não digo aventura, palavrinha desgastada, pois para mim esta significa entregar-se ao acaso, à própria sorte. O que aqui, obviamente, não foi o caso. Pretendo fazer o mesmo roteiro de bicicleta, ainda este ano. Este relato já pode servir como um roteiro base. Obrigado e sucesso em novas empreitadas.
Jeff Santos
Valeu Mestre! A viagem é mesmo espetacular. Aproveite sua jornada. Abraço.
Angelo Cardoso
No minimo parabéns pela sua epopeia! Em 2012 fiz o Caminho de Santiago, 2014 o caminho dos Diamantes, e apos seu relato (nem sei como descobri seu blog) vou percorrer o caminho velho, vou começar no dia 13/06, seus relatos me faz lembrar as coisas que vivi por essas caminhadas. Agora está na hora de reviver isso e retomar meu caminho para encontrar outros depois!
muito sucesso no Appalachian Trail, você é uma pessoa inspiradora!
Jeff Santos
Pô, Angelo, valeu! Fico feliz que tenha gostado! Boa caminhada! Se precisar de mais alguma informação sobre o Caminho Velho só me falar! Abraço.
Luiz Henrique Gomes
Olá, finalmente uma site onde uma pessoa fala dessa viagem sensacional, tenho planejado por um tempo para fazer o mesmo, ainda fica na dúvida em relação a camping, pois eu gostaria de fazer acampando e fazendo minha própria comida algumas vezes… é possível acampar todos os dias ou a maioria deles?
Jeff Santos
Ei Luiz. É possível acampar em algumas das cidades sim. O site do Instituto Estrada Real traz algumas sugestões de locais. No geral a recepção nas cidades é ótima e mesmo que você não ache indicação de local antes o pessoal das cidades pode te ajudar!
luizhsg2
Poxa, obrigado por responder, até pensei que não tinha conseguido enviar a pergunta… acho que você vai ver uma outra aí… eu entrei em contato com o instituto mas eles não me informaram… acho que o negócio é entrar de cabeça na trilha mesmo, preparado pra tudo e seguir… pé na trilha!
Se você ainda se lembrar de uma estimativa de quanto gastou no Caminho dos Diamantes…
Valeu e boa aventura aí nos Apalaches!!
Jurandir Persichini Cunha
O narrador desta aventura está bem desinformado quanto à importância histórico/cultural de Raposos.E, como tal, poderia se inteirar sobre o passado memorial do Antigo Arraial dos Raposos. Sem grande discurso devo dizer que em Raposos está a Primeira Igreja Matriz de Minas Gerais -em estilo barroco rocoó,conforme Códices e Documentos datados de 1670 quando Dom João V ficou a Vigararia Colatícia quando enviou Correspondência Dom Lourenço de Almeida. (Tudo está registrado no Arquivo Público Mineiro e no Instituto Histórico de Minas Gerais) Outro Monumento é e Igreja Nossa do Rosário, também barroca. irão da Prata é uma reserva cristalina de água para abastecer Belo Horizonte. Em seu leito está a famosas cachoeira santo Antônio que está próxima ao distrio de Morro Vermelho, mas pertence a Raposos.
Jeff Santos
Obrigado pelo esclarecimento Jurandir!
Danilo Quirino Rocha
Muito obrigado pela passagem por Diamantina. Temos o prazer de ter entregue seu passaporte. Esperamos revê-lo novamente.
Estrada Real – o vídeo – Longa Distância
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Planejamento de trilhas de longa duração – longadistancia.com
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Planejamento de trilhas de longa duração - LONGA DISTÂNCIA
[…] e conto sobre essa caminhada aqui. Depois foram os 1200 quilômetros da Estrada Real, que também conto o dia a dia nesse link. Me preparava para fazer os 3.540 quilômetros da Appalachian Trail quando fui ao Rio para uma […]
Treinamento de corpo e alma - LONGA DISTÂNCIA
[…] de alguma forma, para isso. Primeiro foram os livros, onde tentei entender a trilha. Depois a Estrada Real, que fiz em junho de 2016. Andar aqueles 1200 km foi uma prova: se conseguisse completá-la bem […]