Distância do dia: 54,45 km (mais 700 m de balsa). Distância total: 750,72 km.
Ainda não era seis da manhã quando saí da casa de meus anfitriões, Eva e Hermes. Ontem, quando liguei pra ela pra avisar que iria chegar às 20:30 em São João del Rei e que ela poderia ir pensando num lugar pra gente jantar, Eva gentilmente me convidou pra ir pra sua casa. “Caldinho aqui em casa, vinho, pão e queijo, pode ser? E se aceitares um couch surfing, ainda temos um sofá em casa. Mas estamos no meio da bagunça. Vamos embora pra Lisboa dia 27”. Já fazia quase uma década que ela morava aqui. A recepção foi divina. Melhor que qualquer restaurante ou pousada que poderia ter encontrado. Quando disse que precisaria sair antes das seis, que me dia seria longo, ela ainda deixou o café pronto pra ser coado.
Tomei duas xícaras, comi uma broa e o sol ainda ia demorar a sair quando cruzei a Ponte do Rosário em direção à Igreja de São José Operário. A rua estava mais cheia que eu esperava, com todo tipo de gente que costuma estar acordado nessa hora: padeiros, operários, lixeiros, caminhantes, estudantes, atletas. Gente vinha pro centro, eu seguia em direção contrária, tentando encontrar o primeiro marco. Quando achei o dia já estava claro, mas o sol ainda ia demorar pra aparecer. “Opa! Bom dia! Tentando achar esse marco já faz um tempo”, falei pro seu Vicente, que vinha pegando a trilha. Ia pro sítio, que fica no início do trecho. “Tá indo até Paraty? Outro dia encontrei dois casas aqui, já de idade. Estavam com uns bastões na mão e a mochilinha vazia, igual você. Pensei que estivessem indo escalar a serra. Aí no dia seguinte tive que ir no Caquende – eu tinha um sítio lá também, mas passei pro meu irmão. Quando estiver chegando você vai ver: Sítio Vô Dinho – e lá tava o pessoal. Era um grupo de uns 18. O mais novo tinha uns 65 anos. Mas tinha gente com mais de 80. Eles tudo indo pra Paraty. Agora aqui não tem erro não: é só ir seguindo em frente”.
Os primeiros quilômetros do trecho até São Sebastião da Vitória eram de trilha e eu tinha me preparado para três riachos que teria que cruzar. O plano era tirar o sapato, cruzar descalço, secar o pé e continuar. Repita três vezes. Mas o primeiro era mais um poço de lama que um riacho. E por sorte alguém tinha colocado uns troncos. Cheio de confiança, apoie os bastões no barro e comecei com o pé direito no tronco. Desequilibrei, o pé esquerdo entrou na lama até a canela, o calcanhar direito também. Maravilha. Ainda não eram sete da manhã e já estava com os pés molhados. E nada do sol.
Deixei assim. Mais meia hora cruzo o local de nascimento da Nhá Chica, uma beata em processo de canonização e sigo rumo ao povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. Antes, o segundo riacho. Um grosso bambu fazia às vezes de pinguela. “Esse não tem problema”. Fui, apoiei o pé direito, escorreguei de novo e meti o pé na água. O esquerdo não molhou dessa vez, mas ainda não tinha secado do primeiro vacilo. No povoado sentei, tirei as meias, dei uma torcida e continuei.
Quando o terceiro riacho apareceu o sol já tinha aparecido e secado meus pés. Aí não tive dúvidas: botei o plano em prática, cruzei sem os tênis e calcei de novo do outro lado, sob o olhar curioso de um cavalo que procurava caminho pra beber água.
Antes do meio dia estava devorando dois cafés, uma broa de milho, uma caçarola, uma coca-cola e um pão de queijo com pernil em São Sebastião da Vitória. Metade do caminho vencido, agora era só chegar em Caquende antes das 5 para a balsa. É que a cidadezinha está na margem norte da represa de Camargos. Ali não tem pousada nem restaurante, só em Capela do Saco, na margem sul. Quando liguei a informação foi que a balsa que faz a travessia só ia até às cinco.
Cheguei às 4:35 e a balsa tinha acabado de sair. Um morador ainda se propôs a buzinar pra balsa voltar e me pegar, mas pedi pra deixar pra lá. “Pode deixar: prefiro atravessar vendo o sol se por daqui a pouco e enquanto isso ficar aqui papeando com esses pescadores”. Era isso que eu queria ter dito. Mas na verdade eu falei “desde que ela volte, pra mim tá beleza. Não tô com pressa”.
Um dos pescadores era o Zé Pretinho. Parou de pescar (“hoje não tá pegando nada”), puxou o banquinho pro meu lado e puxou conversa. “Já passei um tempo em BH, no Barreiro. Meu tio morava lá e fiquei uns 30 dias com ele. Mas eu dia 22 anos. Hoje tenho 75. Naquela época eu queria era pegar a trilha, conhecer o mundo. Morei em São Paulo, trabalhei na construção da ponte Rio-Niterói por mais de dois anos. Morei em Roraima, no Acre, no Rio Grande do Sul, no Pará… Naquela época se aparecia um emprego num lugar diferente eu pedia as contas onde eu estava e ia. Aí casei, minha mulher também é de Santos Dumont. A gente ainda tentou morar em São Paulo, mas já tinha 3 filhos, indo pro quarto, daí comprei um terreno na minha terra e por lá fiquei”.
Quando a balsa voltou já era 17h30. Cruzou o lago enquanto eu via o sol se por, do jeito que tinha planejado. Valeu a pena o esforço e os mais de 50km do dia.
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