Distância do dia: 38,17 km. Distância total: 1.056,36 km.
Dona Adracir talvez seja a pessoa mais simpática e cativante que eu tenha encontrado na viagem até agora. Ela chegou quando eu começava a jantar (um prato enorme de arroz com feijão, um bife, um ovo frito, uma salada de alface e tomate que segunda a Adélia “um lugar ia entregar”). Ela é pequena, olhar firme, sorriso no rosto, cabelo branco cortado curto, o rosto cheio de rugas, mas a energia é tanta que ela não aparenta ter os 80 anos que tem. Chegou por trás, vindo de dentro da casa e pegou no meu braço esquerdo. Pediu desculpas por não estar na hora que cheguei, conversou mais algumas coisas e saiu. Já já volta ela com uma vasilhinha na mão. “Experimenta. É abóbora, aqui da fazenda mesmo”. Falou mais um pouco e saiu. E volta ela com um pé de alface na mão. “Olha que beleza. Daqui também”. Dona Adracir não sentava: ficava de pé do meu lado, segurando meu braço. Perguntou que horas eu ia sair e entrou pra dentro da casa.
Hoje de manhã acordei com ela batendo na minha porta. “Seis horas!”. Levantei, me arrumei e desci. O café já tava na mesa. “O problema aqui é o pão. Padeiro aqui não acorda cedo. Então eu esquentei o pão de ontem, tem pão de forma que você pode colocar na misteira e a Adélia fez esse bolo ontem. E tem queijo, que a gente faz aqui também”. Servi um café, começava a tomar a comer um pão ela volta. “Olha esse livro. É a história da minha família. Um rapaz que era filho de um empregado da minha avó que escreveu. Ela quando morreu deixou tudo arrumado. Um pedaço de terra pra cada empregado, pagou os estudos desse menino. Hoje ele é presidente do Centro Cultural de Cachoeira Paulista”, diz ela orgulhosa. O livro é da família Godói Fleming, e dona Adracir diz que boa parte das terras de Embaú a Cachoeira Paulista era deles.
Ela continuava de pé, contando histórias, eu encantado. Disse que a pousada existe há pouco tempo, mas que ali antes tinha uma peixaria. “Minha irmã que geria o negócio. Ela faleceu tem cinco anos, mas ainda continua na casa”, diz ela mostrando as fotos na parede. “Aquela ali não: aquela sou eu com quinze anos”. Com a morte da irmã, resolveu montar a pousada, incentivada pela turismo religioso de Cachoeira Paulista, sede da Canção Nova, comunidade ligada à Renovação Carismática Cristã. “O problema de turismo é que fica tudo muito caro. Aqui a gente consegue fazer um preço melhor”.
A pousada fica em parte do terreno da fazenda dela, onde já criaram bicho de seda (“tinha num sei quantos alqueires de amoreira”). Hoje se dedicam ao leite. Mas Dona Adracir também já deu rumo pros seus pertences. “Já resolvi tudo. Fiz meu testamento e deixei as coisas pro meu povo. A fazenda ficou pra um menino que eu criei. Daqui a pouco ele passa aqui, trabalha entregando leite. A Adélia trabalha comigo há vinte anos. Já dei um terreno e uma casinha pra ela. Daqui a pouco ela chega e vai pra lá plantar. Uma moça que cuidou da minha irmã quando ela tava doente eu dei um lugar aqui também. Ela que planta aquela alface que você viu ontem. Agora tem uma família mudando aqui pro lado. Deixei eles ficarem aqui um tempo. Gente boa, você precisa ver”.
E ela em pé… “Senta Dona Adracir”. “Eu não sinto que tenho 80 anos, mas a idade chega né? Como tudo na vida é Deus que manda pra gente e a gente tem que aceitar. A vista já não está tão boa, eu já não escuto bem… Mas eu esqueço. De vez em quando subo na escada pra arrumar alguma coisa e vem a Adélia: desce da escada Dona Adracir! Porque o povo não sabe aproveitar as coisas né? Estraga quer jogar fora. Essa cadeira aí tem mais de anos. Essa porta também. Tudo de brechó. Eu adoro brechó. Essa imagem de Cristo tava lá no chão, o povo pisando, toda quebrada, eu queria comprar e eles me deram. Mandei arrumar e olha aí que beleza. Aquela nossa Senhora lá fora também, mesma coisa”.
Quando perguntei a origem do seu nome, ela diz que quando nasceu o pai queria um menino. “Homem prefere ter filho menino né? Mas meu pai era sensível. Foi lá pro terreiro onde secavam café, ficou lá sentado e escreveu esse verso:
Após longa caminhada
Já tirei meu guarda-pó
Mocinha bem educada
Trago o nome da Vovó.
Ricarda se chama ela,
Adracir me chamo eu.
Meu nome é uma charada
Igual a do Zé Bedeu”
Quando saí dei um abraço gostoso e deixei claro o quanto aquela conversa tinha sido agradável e o quanto ela havia me inpirado. Às sete estava de volta às Estrada.
O percurso? Plano, sem nada que chamasse atenção. Ou asfalto, muitas vezes sem acostamento, ou terra, quase sempre com cascalhos e pedras. E sempre com trânsito: caminhões e carros levantando poeira. Na chegada à Guará, uma subidinha longa, no asfalto. Mas o que valeu mesmo o dia foi a conversa com dona Adracir.
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