Estrada Real S01E09: Cocais a Caeté

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Distância do Dia: 45,06 km. Distância total: 362,5 km. Surpresas do dia: várias.

Já era noite quando liguei pra Pousada das Cores querendo saber se tinha um quarto disponível. O Éverton atendeu meio desconfiado mas mesmo assim me passou a direção. Mesmo antes de chegar ao quarto já havia gostado do lugar. Do lado de fora a casa no final da rua, com mesas na varanda, chamava atenção pelos detalhes. Dentro, a medida que Éverton ia me guiando, conseguia distinguir esculturas no jardim, um caramanchão e mais coisas que deixavam o lugar singular. Quando passamos por uma sala de estar, ele comentou: “TV se quiser é aqui. No quarto não tem”. Falei que não ligava TV a uma semana. Na portas dos quartos, de paredes brancas e portas e janelas pintadas de cores diferentes – o meu era o goiaba – Éverton continuava o papo que vínhamos tendo. Contava que fez o Caminho de Santiago, “e lá, em alguns lugares, você deita no colchão, daqueles de molas antigos, e sua bunda vai no chão”. Morou na Espanha quando estudava, fez jornalismo, trabalhou no Estado de Minas (“o Roberto Drummond era meu editor na cultura”), no Palácio das Artes, mas resolveu morar no meio do nada: “no meio do nada acham os meus amigos, né? Eu não acho”. E ficamos ali na conversa, eu ainda de pé, querendo tomar um banho, mas o papo rendia. Até que perguntei se tinha algo pra comer na cidade. “Você gosta de caldo? Se for um caldo dá pra fazer. E não sou modesto não: sou cozinheiro de mão cheia”, ele disse. Gosto de caldo, angu, quiabo, jiló, o que tiver eu como. “Ah, então você é a pessoa certa pra fazer a Estrada Real. Desce às 7 que faço pra você”. Mas 7 já são, Éverton (ficamos uma hora de conversa). “7:30 então”.

Desci e consegui me perder entre meu quarto e a cozinha (como mesmo que estou fazendo a Estrada Real sozinho?). Cheguei uns minutos depois do combinado e Éverton estava acabando de rapar a panela. “Você já quer comer? Pega esse prato aí então. E essa outra vasilha”. Fomos pra um salão enorme, pra pelo menos umas 120 pessoas. E ficamos só nós dois ali, sentados quase frente à frente, cada um com seu caldo de mandioca (ele estava certo: é mesmo cozinheiro de mão cheia) e eu ainda com três pães de inhame, que Éverton também quem fez. “Comi desse pão o dia inteiro. Tô aqui só pra te fazer companhia”. No tempo que devorei três pratos enormes do caldo, falamos sobre mais uma pancada de assuntos. Éverton disse que foi seminarista (“mas hoje não tenho religião, nem time de futebol, nem partido político e sou assexuado”) e que montou a pousada com a ideia de fazer um mosteiro. No terreno tem também uma igreja pra 100 pessoas e dos tempos de seminário guarda amizades com padres e freiras. “As freiras veem aqui e eu pergunto: irmã, quer uma cervejinha? Elas acham que não vai pegar bem então eu falo: preocupa não! Eu boto num bule esmaltado e a gente bebe na xícara. Se chegar alguém a gente fala que é chá. E fico aqui tomando o chá das cinco com as freiras”. Eu caio na gargalhada e ele conta vários outros causos, impublicáveis (porque vou deixar a surpresa pro livro que ele mesmo está escrevendo).

Se não bastasse, ele ainda fábrica licores e vinagres de vários sabores. “Aliás, também estudo a peidologia”, completa. E já emenda: “e doce, você gosta? Hoje tem de mamão, de banana com chocolate e goiaba com banana. E sorvete? Os sorvetes a gente faz aqui são excelentes. Tem dê araticum e abacate. Experimenta”. Me ganhou na simpatia, na conversa e no estômago. Volto a Cocais só pra passar mais um dia com ele.

E na hora de ir ver o jornal, assiste na companhia de Joãozinho e Mariazinha, os dois novos habitantes sortudos do lugar: “devia existir um chef pra comida de cachorro né? Ração é ruim demais. Os meus amiga passam bem. Compro fígado de galinha e misturo na ração deles. Eles ficam olhando pra mim pensando assim: ‘nossa, esse meu humano de estimação cozinha tão bem'”. Subi pro quarto ainda cheio de admiração.

Ele havia deixado a chave do portão pra eu sair. Ainda não eram seis quando deixei a pousada, mas só cheguei ao primeiro marco do Caminho de Sabarabuçu uma hora depois. Na noite anterior, quando cheguei, confesso que não havia seguido os últimos marcos: me guiei pela sugestão do Google Maps. Agora pela manhã, querendo fazer a coisa certa, fui acompanhar a (eu já disse isso?) confusa planilha do Instituto. E dei uma volta danada por ruas sem marcos até chegar onde queria.

Deixar os Diamantes e começar o Sabarabuçu era dúvida até ontem. Tudo por causa do crime ambiental em Bento Rodrigues. Não fosse isso, continuar por Barão de Cocais, Santa Bárbara, Catas Altas, Santa Rita Durão, Camargos, Mariana e Ouro Preto era o caminho mais sensato (e rápido). Com a interdirão do trecho entre Santa Rita e Camargos, onde estava Bento Rodrigues, a opção seria ou ir pelo asfalto ou pegar o Sabarabuçu em Cocais, que foi o que fiz. Ainda sobre o crime, meus planos originais eram fazer o Caminho dos Diamantes, só ele, no final de outubro e início de novembro do ano passado. Como apareceu uma viagem pra China a trabalho (como recusar?) na mesma época, adiei a caminhada. Pela minha programação original, faria o trecho de Santa Rita a Camargos no dia 5 de novembro. O dia que a represa se rompeu.

Menos de uma hora depois de cruzar o primeiro março, estão lá, de novo, os eucaliptos. Menor que o do dia anterior, cruzei a plantação com o mesmo nervosismo.

O sol demorava a surgir e era fácil andar num bom ritmo pela manhã. Passei pelo distrito de Antonio Carlos e segui contornando o Morro da Piedade. Faltando uns 10 quilômetros pro final, o tempo está escuro e sinto as primeiras horas. Paro, tiro a mochila, pego a capa e quando boto a mochila de novo ouço um zumbido. Mais rápido que eu, o marimbondo/vespa/abelha/sei-lá-o-que de Itú (o bicho era quase do tamanho de um beija-flor, juro!) fica o ferrão na minha nuca. Ainda agora, seis horas depois do ocorrido, sinto meu pescoço dolorido). A chuva, coitada, nunca veio.

“Caeté é do lado de Belo Horizonte”. Ficava pensando isso a medida que me aproximava. Mas só quando passei na porta da rodoviária e vi um ônibus lotação (executivo, mas lotação) me dei conta do quão perto as duas cidades estão (são 45 km, a mesma distância que tinha andado). Me aproximei e perguntei pro motorista: “esse ônibus sai que horas?” 4:10 . “E demora quanto tempo a viagem?” 90 minutos. “É o primeiro ônibus de lá pra cá que horas sai?” 6:30. Não tive dúvidas: entrei no busão e vim passar a noite na melhor pousada de todas: a minha casa.

3 Responses

  1. Luiza e Rafael

    Olá Jefferson, encontramos você no caminho para Itambe do Mato Dentro.. Estamos em Ouro Preto, passamos por Cocais e conhecemos o Sr. Everton também ( fantástico). Depois fomos ao Caraçao. Desejamos a você uma boa continuidade do caminho. Espero que goste do caminho até Sabará.

  2. Guilherme Palhares

    Cara sou de BH também, saberia me informar se o trecho dos diamantes ainda está interditado? não gostaria de fazer o sabarabuçu exatamente por estar perto de casa e ter o receio de voltar e procrastinar kkkkk

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