Estrada Real S01E29: Cunha a Paraty

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Distância do dia: 61,50 km. Distância final: 1.172,45 km
Se essa caminhada fosse mesmo uma série de TV, como venho brincando, esse último dia seria aqueles season finale com o dobro de duração, com direito a flashback, novos personagens, choro e mudanças supreendentes no final.

O dia começou cedo. Quando acordei, às 4:30, já vi a luz da cozinha acessa. Cida tinha cumprido a promessa e acordado antes de mim pro café. Subi e ela já tava na porta, com a mesa posta. “Dormiu bem, Jef-fer-son?” Ela fala o meu nome pausadamente, destacando bem as sílabas. Eu tinha dormido super bem. A pousada do Sossego é realmente o que o nome sugere. “Olha, Jef-fer-son, aqui tem pão. Pode comer. E queijo de Cunha. É muito bom. O café é torrado em casa, viu? Infelizmente não tenho banana, mas tem maçãs e laranja serra d’água. E esse bolo é ótimo pra você. Não tem nada de gordura. É cremoso mesmo. Gosta de suco de laranja? É natural. Foram sete laranjas. E nada de água, viu Jef-fer-son?” Eu ia comendo, ela me mostrando mais coisas, até que falei pra ela sentar pra gente conversar. Você é daqui mesmo? “Sim, sou nascida em Cunha. Fui professora de primeira a quarta série por 25 anos. Dez na zona rural, 15 na cidade. Antes fui empregada doméstica, mas estudei e me formei. Dormia acima de onde ficam os porcos na fazenda”. Casada? “Fui casada duas vezes, com dois homens com o mesmo nome, José Luis. Mas os dois morreram. Meu segundo marido morreu faz dois anos”. E toda vez que fala do segundo fala com saudade na voz. Do primeiro não: bebia muito e ficaram casados por seis anos. Com o segundo foram 30. 

Ontem quando cheguei Cida estava com uma camiseta de Istambul. Perguntei se era por causa dos ataques. “Não, eu estive lá. Eu e meu segundo marido, que morreu há dois anos, viajamos muito. Fomos a vários países: Turquia, Portugal, Aracaju, Maceió…” E quando conta das viagens se alegra. Conta dos passeios de navio no Nordeste, de balão na Capadócia, de ser assaltada em Portugal. “Roubaram todo o meu dinheiro, até o que eu tinha no Brasil. Só não levaram meu passaporte. Levaram 3 mil euros, meu cartão, a senha… Tiraram até meu dinheiro de aposentadoria”. Mas depois que o segundo marido morreu Cida não viajou mais. Tento incentivar, tirar um final de semana e ir pra Minas, que é perto e ela não conhece.

Quando vejo já são 5:30, hora de despedir e pegar estrada. Quando entro na estrada de terra ainda é noite e fico pelo menos uma hora com a lanterna na cabeça. O caminho vai subindo devagar, passando por propriedades rurais, pousadas, fazendas, restaurantes, vilas, cachoeiras, até chegar de novo no asfalto. É um pouco de tudo que a gente vê durante toda a Estrada Real. E quando chega no asfalto,  mais subida. Ao todo são 35 km serra acima, até a divisa com o estado do Rio.

É meio dia e o pessoal que terminava a colocação das placas na recém-pavimentada estrada Paraty-Cunha começava o horário de almoço. (Na verdade a Estrada ia ser inaugurada só amanhã, dia 1. Ainda faltavam muitos acertos, mas é ano de eleição, você sabe…) A partir da divisa tudo muda. A vegetação é esplendorosa: samambaias gigantes, orquídeas, bromélias, cipós. E é só descida. Vinte e dois quilômetros ladeira abaixo. Logo no início uma clareira na mata revela Paraty lá embaixo. É difícil segurar a emoção vendo a linha de chegada tão perto.

Faltando poucos quilômetros para a cidade paro em frente a um ateliê de cerâmica pra apreciar a vista da cidade mais uma vez. “Aqui é o nosso belvedere”, diz Jorge, o artista, tentando fazer sua voz soar mais alto que os dois gansos que passavam por ali. Sento pra tomar uma água e bater um papo e sou surpreendido por Acajá. Ela corre e se joga no meu colo. E aquela cadelinha branca de orelhas negras fica ali ganhando carinho no colo enquanto Jorge conta que é paulista, formado em artes na   USP, professor, e que um dia, ainda nos anos 80, um aluno veio lhe dizer de uma chácara que estava à venda em Paraty. Ficou em dúvida, pegou conselho com uma amiga, e comprou. Mudou pra lá faz 15 anos, e hoje nem contato com os antigos clientes de São Paulo tem. Mas acha que a estrada nova pode trazer clientes paulistas para o negócio. “Hoje, por exemplo, estou aqui de plantão o dia inteiro e ainda não vendi nada. Acho que os cariocas, como tem a praia e um cenário lindo ao redor, não são tanto valor pra coisas de casa. Mas os moradores de nossas metrópoles cinzas não. Eles valorizam mais coisas como as que eu faço”. Ele fala num português correto, voz bem empossada e aparenta ter menos que os 60 anos que diz ter. Quando me despeço, ele agradece. “Obrigado. Quando voltar pra estes lados lembre-se de mim”.

A estrada desce, desce, e parece nunca chegar. Faz curvas, passa por diversas pousadas e restaurantes, um bairro e finalmente chego ao trevo de Parary. Mais alguns minutos e entro no Centro de Informações Turísticas. Ainda não são cinco da tarde. “Posso te ajudar?”, me pergunta a Juliana. “Agora não. Deixa cair a ficha primeiro”, respondo. Ela fica olhando sem entender, eu com lágrimas de emoção nos olhos, até que falo que quero o carimbo e o certificado. Conversamos, dei dicas, recebi informações, Laíse, que também trabalha lá, me pede uma foto e o endereço do blog e eu saio pra ver o último marco da Estrada Real.

Já são seis da tarde, está escuro e a cidade fervilhando por causa do Flip. Eu andando cansando pelas ruas de pedra, começo a ir pra pousada que o Allan havia reservado pra mim ontem, e começo a me imaginar ali, no meio daquela tanto de gente, tendo que enfrentar fila pra comer, andando com os pés doloridos naquelas ruas de pedra, quando dou meia volta e compro a primeira passagem pra fora dali. Daqui a algumas horas estou no Rio e amanhã cedo em BH. Pronto pra começar a preparar a próxima caminhada.

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