Estrada Real S01E07: Itambé do Mato Dentro a Ipoema

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Distância do Dia: 40,87 km. Distância Total: 275,36 km. Idade dos meus novos amigos: 84 e 89 anos. 

Quando ele subiu as escadas do decadente Hotel Estrela (acho que o nome no singular é devido à classificação do estabelecimento) achei que estivesse bêbado. Subiu se agarrando no corrimão e no último degrau quase rolou escada abaixo. Chegou e já foi puxando uma cadeira pra minha mesa na varanda, deixando a capanga na porta da recepção. Chapéu, camisa azul com estampa de cavalo, jeans, botas, só podia estar vindo de cavalgada. “Os companheiros alugaram uma casa mas eu falei que ia ficar no hotel. Eles ficam até tarde bebendo, falando, e eu quero descansar. Fiz 84 anos essa semana, tamo vino de cavalo lá de Itabira”. Para quem não visualizou o mapa, são mais de 50 km.

A cavalgada do dia era tranquila. Desde 2006 seu Eugênio já fez a Estrada Real inteira, de Diamantina a Parati, três vezes, sempre no lombo do cavalo. “Ah, é bão demais né? Ultima vez que fui no médico, não tava ouvindo direito, achei que fosse o aparelho mas era só cera no ouvido, ele chamou a minha filha e falou pra ela não deixar eu ficar andando de cavalo assim não. Capaz!”. Seu Eugênio trabalhou 33 anos, sempre na área administrativa: “de início a empresa tinha uma armazém, eu que cuidava. Depois fui pro almoxarifado. E depois pro hospital. Ih, menino, eu poderia ter ficado rico demais se eu quisesse. A gente chateado vendo as notícias de corrupção, se eu te contasse o que eu já vi…” E conta caso, dos trabalhos (foi vereador e candidato a prefeito), dos filhos, das cavalgadas. “O povo me chama de vovô das Cavalgadas”, comenta.

Aí se dá conta que ainda não tinha de fato chegado: “acho melhor eu ir tomar um banho né?”. Foi e voltou, camisa limpa com estampa de outra cavalgada. E da-lhe mais história. “Eu lembro de tudo, tudinho, desde que eu tinha 7 anos. Tô escrevendo um livro da minha vida. O moço que tá fazendo a revisão disse que nunca viu história tão bonita”. Antes de ir dormir, seu Eugênio me dá a receita da sua energia: “quando você começar a sentir que vai ficar doente, toma uma dose de conhaque Dreher. Mas não toma igual cachaça não. Toma devagarinho…”

Fui pro quarto querendo uma dose de Dreher: estava com meia dúzia de bolhas em cada pé e a unha 5 – conto as unhas da esquerda pra direita. Então a 5 é a unha do dedão esquerdo – estufada, com um inchaço no entorno que já estava começando a incomodar. Decidi que era hora de drenar. A primeira parte foi fácil: enfiei a agulha na parte de cima, perto da cutícula. Depois no canto esquerdo. Enfiava, passava a linha, e ia tirando o líquido. Aí veio a parte chata: peguei a agulha e enfiei por baixo, entre a carne e a unha, já que ela estava alta, quase saltando do dedo. Isso, vocês sabem, é uma forma de tortura. Eu respirava pelo nariz e soltava pela boca, rapidamente. Apertei a unha e vi o líquido branco escorrendo pela linha.

A drenagem deu resultado. O dedo já não incomodava pela manhã. Como o Hotel e Restaurante Estrela não servia café da manhã (nem jantar na noite anterior), tomei um suco de latinha que tinha, comi uma banana e saí pra rua. A planilha dizia 16 km pelo asfalto até Senhora do Carmo e depois outros 16 por terra até Ipoema. Mais uma vez ignorei o guia: ao invés de sair reto, pegando o asfalto, subi em direção à Cabeça de Boi e quebrei à esquerda. Foi andar uma hora até chegar na entrada da Cachoeira Vitória. Me embrenhei no mato por mais um tempo só pra ver de perto os quase 80 metros de queda.

De volta ao caminho, ia admirando a sequência de serras. Lobo, Linhares, Alves… Tava na região conhecida por Conquista. Numa das placas a indicação era Tiá, mas ninguém me confirmou o nome.

Numa das paradas pra fotos, seu Alberico veio subindo no seu burro. Cumprimentou e também desatou a falar. E quanto mais eu perguntava mais ele entrava nos assuntos. Deu nome pras serras todas, falou das várias cachoeiras no entorno e disse que o nome do lugar era mesmo Conquista, por causa do ribeirão. Fiquei curioso com sua idade. “Eu nasci em 1927. Tenho 89 anos. É. Nascido e criado aqui, mas morei muito tempo fora. É. Pra cá eu voltei quando casei, em 54. É. Morei em Belo Horizonte também. Ih, você nem sonhava em nascer. Adivinha quando eu mudei pra Belo Horizonte?” Deve ter sido antes de 54… 50?, chutei. “1942. É. Aquilo ali não tinha nem ônibus, era só bonde e transporte no lombo do burro. É”. E ia afirmando depois de cada frase, como que para garantir que a memória não iria falhar. Seu Alberico trabalhava em uma fábrica de trens, montando vagões. Eram preciso 6 homens pra carregar uma roda. “Eu trabalhava ali ainda quando o Getúlio Vargas morreu. Ele morreu em 54. É. 24 de agosto de 54. Quando ele morreu fechou tudo. A gente tava trabalhando ainda quando veio alguém perguntar se a gente não tava sabendo. ‘Getúlio Vargas morreu, mas já vão colocar outro no lugar'”. Nessa hora passa um caminhão carregado de gado. Seu Agripino cumprimenta o motorista e volta pro caso. “No mesmo dia chegou um caminhão com soldado, do tamanho desse aí, carregadinho, eles tudo com fuzil na mão. Mandaram a gente tudo largar as ferramentas. Achei foi bão: fiquei três dias em casa”.

Seu Agripino diz que também lembra de tudo, “deus de que eu tinha 10 anos”. Aos 89 ainda vai na feira em Itabira toda semana. De burro. Vende o que planta “de tudo um pouco: mandioca, inhame, banana” e compra o que precisa. Quando despedimos, eu já com lágrimas nos olhos de emoção, ele me convida a vir uma outra hora, pra gente conversar um pouco mais e ele contar outras histórias.

Quando cheguei em Senhora do Carmo já era meio dia, o sol queimando, eu cansado. A ideia seria ir até Ipoema também por um roteiro alternativo, passando pela Vila de Serra dos Alves , a cachoeira Boa Vista é o Parque Estadual Mata do Limeiro, o que acrescentaria umas 2 horas no percurso. Mas eu estava tão cansado que optei pelo caminho demarcado. Fui mecânico, robótico, movendo as pernas sem motivação só esperando chegar na cidade. A cada parada pra água – com o calor do início da tarde as paradas eram frequentes – eu voltava a caminhar como o Kevin Spacey no final de Os Suspeitos: primeiro meio torno, cambaleando, arrastando as pernas, e só depois me acertava e pegava o ritmo.

Quando cheguei a Ipoema liguei pra uma das pousadas, a Quadrado. Aceita cartão? Aceita. Tem vaga? Tem. Então tô indo.

Nem do portão passei, quando o dono jogou por água abaixo os 500 anos de hospitalidade mineira. “Teve um mal entendido. A gente não abre hoje”. E na minha tentativa de mostra que isso acontece mas ele tem que informar melhor os funcionários, me deu as costas e saiu. Males que vem pra bem: tô aqui na muito mais charmosa e barata Tropeiro Real. Só aceita dinheiro, mas o Ronei garantiu que em Bom Jesus do Amparo, meu próximo destino, tem agência do meu banco.

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